sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Contorno [letra-corpo-cidade]

No segundo semestre de 2014, o CAPUT partiu para uma intervenção cultural urbana, que envolveu várias oficinas, equipe clínica e adolescentes em ações artísticas estimulantes e muito criativas. 

O processo de produção da ação artística "Contorno [letra-corpo-cidade]" começou com atividades de "contorno do corpo", com direito a uma homenagem ao "Divisor" da Lygia Pape. 


                           

Para experimentar o contorno do corpo no coletivo, Christina Fornaciari, auxiliada pelo educador Digô Faria, propôs que costurassem as roupas para se tornarem um corpo só, dentro de uma estrutura única e disforme (ideia de Órgãos sem Corpos, do Zizek, em cima do Corpo sem Órgãos Deleuze e Guattari, d'aprés Artaud). No momento em que ela tirou as peças da sacola, os meninos se empolgaram, começaram a vesti-las e a dançar! Desceram as escadas, foram mostrar, de um modo muito engraçado, à Nara, na recepção, como estavam lindos! Depois foram para o jardim de inverno, subiram na mesa, alguém puxou um funk e o negócio virou uma verdadeira festa. Serenados, experimentaram, em duplas, costurar as roupas. "Não consigo passar a linha na agulha, isso é bagulho de mulher", disse um menino, o que gerou um desdobramento sobre questões de gênero, preconceitos e olhares sociais. "Costurar eu sei", disse uma das meninas, "porque as tia lá [do centro Socioeducativo] ensina a gente". Ao final, meninos e meninas costuravam juntos. 

 



A segunda parte do processo foi uma oficina de letras, "contorno da palavra", para produção de frases com a palavra "contorno", coordenada pela Luciana Cezário. Seguimos, na oficina, um procedimento inspirado nos surrealistas, com seu Cadavre Exquis (cadáver requintado), disponibilizando para os meninos várias palavras e expressões que deveriam ser encadeadas, do jeito que quisessem, para formar frases de, no máximo, 10 palavras. Todas as frases deveriam ter a palavra "contorno" (as palavrinhas recortadas ficaram disponíveis). Além dos oficineiros, os profissionais psi se envolveram, evitando uma seriedade "literária" que poderia inibir os adolescentes (muitos com baixa escolaridade). A coisa seguiu o ritmo de uma brincadeira, leve e descontraída. Era permitido incluir artigos, preposições e pronomes, como o, a, os, as, da, do, das, dos, de, até, após, com, desde, em, etc. 

As palavras foram extraídas de textos e poemas de Cecília Meireles, Octavio Paz, Manuel Bandeira, Beatriz de Almeida Magalhães, Arnaldo Antunes, Leminski, Carlos Drummond de Andrade, Manuel de Barros, Adélia Prado, Torquato Neto, Vinicius de Moraes, Machado de Assis, Sousândade, Clarice Lispector, Augusto de Campos, Hilda Hilst, Ferreira Goulart, Antonio Cicero, Caio Fernando Abreu, José Saramago e Ana Cristina César. Esses autores já haviam sido selecionados anteriormente por Musso Greco, curador da intervenção "Contorno [letra-corpo-cidade], em seu conto "Avenida do Contorno", publicado no livro "Orates [contos clínicos]", de 2013, que começa com o que viria a ser o mote dessa ação artística no CAPUT: Como não tenho um corpo, me materializo na cidade. Minha matéria é feita das palavras dos poetas, dos escritores, dos mestres da língua. A língua assim equipada percorre o corpo da urbe, contorna-a, sobe e desce, vai e volta, lambe e entra. Contorno meu corpo.

   


As combinações palavreiras resultaram em efeitos poéticos, que não podem ser atribuídos ao mero acaso. De algum modo, o sujeito aparece na escrita, ao se apropriar das palavras do Outro. Um adolescente, por exemplo, escreve: As coisas têm contorno de deuses a nascer, corporizado em negro. E comenta: "Quis mostrar que passo por preconceito em relação à minha cor". Já uma menina, às voltas com a sensação de "falta de lugar no mundo", em um meio sociofamiliar hostil, escreve: Tu, cidade irreal, adorno do prazer, contorno do amor. Outras frases incríveis revelam, entre as palavras dos escritores conhecidos, um modo próprio de jovens anônimos nomearem algo do seu ser que traduz um excesso pulsional, sua falta de contornos:

Mas o ruído na hora de dizer fere o meu contorno

Que contorno de nada, eu te entorno

O contorno do teu corpo corria atrás da pessoa errada

Nas águas fundas, perco o controle e o contorno de tudo

Onde todo o contorno finda sobre o rosto irreal

Como um campo minado, só o contorno de uma sintaxe

Erro cujo contorno tem corpo

Toco o contorno da noturna noite que cobre o íntimo

Não me ensinaram nunca que as coisas têm contorno

Busco o contorno do último interno, o íntimo

(como não pedimos autorização a eles, não publicaremos os nomes dos adolescentes)








O próximo passo foi digitar e reproduzir as frases, inspirados no trabalho "Notas para meio-fio", do Wilson de Avellar (2010), originadas da sugestão de Giorgio Agamben, feita em "O que é o contemporâneo?", que situa o ponto de vista do observador "na cidade e no tempo em que lhe foi dado viver". 




As frases foram plotadas em papel, com letras de 8 a 10 cm de altura, depois cortadas em em tiras. 



                  


Fizemos testes com grude (sugestão do Warley Bombi), metil-celulose e spray adesivo SPRAY MOUNT da 3M (sugestão da Elisa Campos), e cola branca á base de PVA (sugestão do Wilson Avelar) no meio fio da frente do CAPUT. Optamos pela cola branca. Depois, escolhida a cola, fizemos um mapeamento dos lugares - esquinas da Avenida do Contorno - onde poderíamos colar as frases, no momento "contorno da cidade" de nossa intervenção. 

Foram, ao todo, 30 esquinas com a Avenida do Contorno: 1- Tupinambás; 2- atrás do Parque Municipal; 3- na praça em frente ao Instituto Raul Soares; 4- Grão Pará (canteiro); 5- Otoni; 6- Francisco Sales; 7- Grão Pará/Getúlio Vargas; 8- Santa Rita Durão; 9- Luz (sentido Santa Tereza); 10- Afonso Pena; 11- Antonio de Albuquerque (ilha); 12- Rio Grande do Norte; 13- Pernambuco (canteiro); 14- Alagoas; 15- Levindo Lopes; 16- Bahia (canteiro); 17- Colégio Estadual Central; 18- Marília de Dirceu; 19- Olegário Maciel; 20- Matias Cardoso (saindo da trincheira); 21- Amazonas; 22- Alvarenga Peixoto; 23- Timbiras (canteiro); 24- Andradas (em frente ao n° 10.100); 25- Mato Grosso (ilha); 26- atrás da Rodoviária (Rua 21 de abril); 27- Rio de Janeiro ; 28- Andradas (mureta do 104); 29- Caetés; 30- Oiapoque.


 
  
             
             



O lambe-lambe no meio fio dessas esquinas foi feito na noite de 6 de setembro, para que as frases pudessem ser vistas no dia seguinte, 7 de setembro, durante a VACO (Volta Anual da Contorno), uma farra performática, evento "da mais pura significação histórica, transcendental, monumental e abissal", "sujeito a alucinação, pulhas, pilantragem e curtição sincera garantidas" e "cercado, rodeado e preenchido com pujante euforia e miasmas (pútridos ou não)", organizado por Davi Kacowicz, André Veloso, Helena Assunção e Gabriel VonSeca, que está em sua 11a. edição. 


                                   


                                  




Trabalhamos, assim, o dentro – as condições internas da subjetividade, os sentimentos, a concepção de mundo –  e o fora – o que circunda o sujeito, sua representação social. Ao se darem a ver na cidade, como frase poética impressa no meio-fio, conclui-se um circuito pulsional, no qual o sujeito, efeito da experiência artística, é ele e é Outro, é autor e é obra, é uma camada da rua, um objeto, mas também um pedestre, um olhar. A reação excitada dos adolescentes à sua própria aparição no espaço público confirma esse reencontro da pulsão, esse reencontro do olhar: “Essas palavra é minha!”, “Ó eu lá!”, “Agora todo mundo vai ver!”.




                                


                                




É nóíz! - O CAPUT, lambendo a Avenida do Contorno com poesia.




  

 (equipe lambe-lambe do CAPUT)
 




domingo, 26 de julho de 2015

Basaglia com Lacan



Texto de Carlo Viganò publicado na Revista Mental [Mental v.4 n.6 Barbacena jun. 2006]

A reflexão que proponho é a da conjunção entre a experiência de Basaglia e o ensinamento de Lacan. Apesar de a mim não parecer que esses nunca tenham se encontrado e que, também, na obra escrita seria muito mais árduo encontrar convergências, todavia me parece que, quanto ao que transmitiram, a dimensão ética que souberam dar à loucura, há uma marca, uma direção comum e capaz de potencializar-se reciprocamente. Pelo menos esta é a minha experiência na qual gostaria de encontrar as razões.
A ligação entre as duas obras nos é confiada. A quem puder extrair da experiência basagliana um ensinamento, proponho fixá-lo em um aforisma que parafraseia aquilo com o que Lacan ligou a obra de Freud com a de Saussure: se Basaglia tivesse lido Lacan, haveria dito que o fechamento dos manicômios é uma troca de discurso e que o discurso do analista pode motivar "a posteriori" essa passagem (aquela que Lacan chamou passe). É uma afirmação difícil de sustentar ao se pensar na feroz oposição basagliana à psicanálise. Para fazê-la, deverei mostrar como o ensinamento de Lacan traçou um sulco essencial no terreno da saúde mental.

1- A abertura do manicômio
Somos habituados a pensar a abolição do manicômio como o maior êxito da obra de Basaglia, mas isto acaba por reduzir sua intervenção a um mero fato legislativo. Seria como considerar que a contribuição essencial da psicanálise para a cura da doença mental tenha sido a promoção da lei de 1989 sobre Ordem das Psicologias e o reconhecimento do psicoterapeuta. Em ambos os casos, a relação entre a "reforma do entendimento" e a reforma legislativa se prestam a considerações contraditórias, no momento em que a novidade introduzida pela lei tende a fechar propriamente o princípio nuclear do pensamento que se supõe havê-la inspirado.
Pode-se dizer, de fato, que as novas ordens são criadas jogando fora da bacia, junto com a água suja, também o bebê: a Medicina fala abertamente do discurso do louco, assim como a Psicologia fala do discurso do analista, isto é do seu desejo.
Vejamos tal questão de acordo com esse efeito de fechamento. Pode-se intuir, facilmente, que essas mudanças em nível legislativo e, de conseqüência, da organização social dos tratamentos, antes mesmo de modificar o tratamento da doença mental, introduzem uma rebelião em nível da clínica. É um fenômeno histórico do qual Foucault já havia estudado os episódios precedentes, em particular aquele que leva verdadeiramente ao "nascimento" da clínica, isto é, a uma nova e inédita visibilidade daquilo que é a doença. A mudança da organização social encontra, no início do século XIX, na anatomia patológica, o instrumento científico para inventar a forma moderna da doença.
Para reportar essa estrutura histórica ao nosso caso, parece-me útil, também, uma outra referência: a antropologia de Levy-Strauss. Ele nos mostrou como as classificações sociais - e aqui podemos colocar também a classificação das doenças - tendem a persistir mesmo depois que tenham passado por substanciais mudanças demográficas. A exemplo, o nome de uma tribo que se extingue virá a designar um subgrupo de outra tribo que, se torna muito maior. Tudo isto para colocar-nos atentos sobre uma aparente continuidade entre a abertura do manicômio e as políticas de saúde mental (com um jogo de palavras podemos dizer: de fechamento de manicômio) ou entre psicanálise aplicada à saúde mental e psicoterapia.
Um pequeno sinal de que se está produzindo mudança em clínica pode ser encontrado na substituição do termo "doença" como "incômodo" e a um outro nível - como "distúrbio de personalidade". A aparente desmedicalização revela, subitamente, uma outra face: a do exponencial acréscimo no investimento terapêutico do mal-estar social. Põe-se ao lado dos médicos toda uma série de outros terapeutas.
Em outros termos, o adiamento dos processos terapêuticos tende a ocultar, se não a tornar a enviar no real o intratável, as mudanças da clínica. Veremos como a obra de Basaglia se aproxima da de Lacan, no que se refere ao esforço de caminhar do outro lado da terapia para tornar atual e transmissível a novidade clínica.

2- Antipsiquiatria, antipsicanálise?
Nos anos 60, o ensinamento e a experimentação de uma gestão psiquiátrica alternativa, iniciada em Gorizia, aglutinou em torno de Basaglia um movimento próprio, verdadeiro e antecipador daquele, legado às hipóteses de gestão alternativa de uma outra instituição, a Universidade. Não creio que o efeito de antecipação vá ser procurado em uma analogia qualquer entre a instituição manicomial e a universitária, mas no próprio fato de que, no manicômio, uma experimentação alternativa assim se articulasse estreitamente com um ensinamento. O manicômio, escola de vida social e de transformações culturais. Veremos como na França, nos mesmos anos, encontra-se essa particular ligação entre a experimentação de uma gestão alternativa da instituição analítica e o ensinamento de Lacan. Veremos como essa vizinhança estrutural teve um peso que tende a tornar-se histórico, para citar o witz Lacaniano quando falava do emoi de mai.
O ensinamento de Basaglia tinha, ao menos, duas raízes:
- a denúncia do tratamento dos doentes mentais, que os privava de todo direito humano e os fechava em lugares de exclusão social. Tal tratamento não só não curava, mas reforçava o estado de marginalização dos internados. Essa denúncia torna-se um paradigma daquela mais geral da sociedade neocapitalista, se formada sobre o terreno da clínica;
- a abertura da psicologia marcada, primeiramente, pela fenomenologia e, depois, pelo existencialismo - as teorias sociológicas anglo-saxônicas que se demonstravam subversivas à psicologia enquanto tal.
A dimensão social vinha sendo sentida como capaz de revolucionar para si a concessão da veiculada subjetividade da psiquiatria. Devemos notar que nesse movimento vem assimilado tudo o que era "psico", e a psicanálise foi totalmente envolvida na contestação da psiquiatria, de cuja ideologia era considerada a expressão mais refinada.
Creio que para essa assimilação concorreram dois elementos. De uma parte, a política geral (isto é, da oficialidade IPA) da psicanálise apontava a conquistar para si um posto nas instituições universitárias e de tratamento, misturando-se com as disciplinas psiquiátricas e psicológicas. De outra parte - e de conseqüência - o alvo da contestação não pode ser, como logicamente deveria ser, a concessão psicológica inerente à psiquiatria, para o próprio fato de que essa ficava implícita. A psiquiatria, isto é, o receptáculo prático e institucional de todas as teorias psicológicas, compreendida a psicanálise - de Musatti a padre Gemelli.
Devo precisar rápido que para seguir o meu fio, que é aquele da ligação, devo novamente remeter o exame da valorização histórica que Basaglia tinha da psicanálise e, depois, dos motivos pelos quais não a retinha como aliada útil. Faço, pois, a hipótese de que, na Itália, a obra de Basaglia pode assumir - do exterior - aquele dever de denunciar desvios e erros da psicanálise que, na França, o ensinamento de Lacan tinha inicia- do proclamando - do interior - a necessidade de retornar a Freud.

3- Paranóia e instituição
Em 1969, Lacan, em pleno clima de contestação, vai a Vincenne para falar aos estudantes e tenta explicar a eles onde a Universidade os está traindo. Naquele ano está se formalizando a estrutura do vínculo social, que chama de "discurso", a partir daquele fundamental - o discurso do Mestre - que se articula como "o avesso da psicanálise". Essa oposição é a base para se estabelecer o lugar de outros dois discursos: o discurso da histérica e o Universitário. Quatro discursos e não mais; e a passagem de um para o outro consiste em um quarto de giro de quatro elementos (sempre aqueles: S1, S2, a, S), em quatro posições fixas: o agente, o Outro, o produto e a verdade.
A perversão contemporânea do discurso universitário é ligada à sua contaminação com o discurso do Mestre: o saber (S2) posto no lugar de comando, fora do seu contexto discursivo, e o caminho à sua incorporação com S1.
Essas perversões das estruturas discursivas, produzidas pelo saber da ciência, são características do capitalismo que age sobre o discurso humano, abolindo a impossibilidade lógica do mesmo discurso, aquela da relação entre produto e verdade. A revolução que Lacan propõe é a que faz o giro dos quatro discursos. Ao repassar para o discurso do analista, pode-se recuperar, também para o saber, um lugar que não seja de poder e, assim, devolver à universidade a capacidade discursiva de produzir sujeitos divididos ao invés de professores.
A afirmação de Lacan é explícita: o lugar e a função da psicanálise no social são aquelas de boucler, o giro revolucionário dos discursos. O matema do discurso serve a Lacan para selar, definitivamente, o fato de que o vínculo social não se baseia sobre a intersubjetividade, mas sobre a mesma estrutura do sujeito. O inconsciente é relação com o Outro, discurso do Outro, que não se pode reduzir à cadeia significante para a qual o vínculo social se estabelece no tempo de recuperação, de gozo da parte do sujeito: o fato mais íntimo da experiência, a nomeação do objeto originário e perdido é, ao mesmo tempo, a raiz do vínculo social. Essa lógica representa o fruto maduro do trabalho de Lacan sobre "fato psíquico fundamental", a paranóia, iniciado com a tese de doutorado e que o havia levado a Freud.
Naqueles mesmos anos, Basaglia e seu grupo partiam da paranóia para interrogar o ponto de união entre doença mental e contexto social. Como dizia, esses não eram os pontos precedentes à corrente do trabalho de Lacan sobre paranóia (em particular o Seminário III - As psicoses) e, portanto, não puderam adotar a fundamental denúncia que Lacan havia feito do prejuízo psiquiátrico. Pode-se resumir da seguinte forma: tudo na clínica leva a reter que o perceptum alucinatório e, em geral, todo "fenômeno elementar" da psicose não é atribuível a umpercipiens que coincida com o Eu psicológico. Ao contrário, este último deve dar sentido a um perceptumcompletamente alienado para reintegrá-lo - em um segundo tempo - no sistema do Eu e esse é, propriamente, o trabalho da paranóia.
Naquele momento, na França, Lacan havia aderido a um projeto político de crítica da psicologia promovido por Politzer; tanto que a publicação da sua tese foi assinalada por Paul Nizan como precursora de mudanças no tratamento social da doença mental. O trabalho de Basaglia não interrogou a especificidade subjetiva da experiência psicótica. Veremos como será, a partir dessa falta, que toda sua crítica histórica ao tecnicismo psicológico não conseguirá separar-se do nível puramente estratégico. De resto, a falta de um encontro com a análise de Lacan foi favorecido pela censura quase total. Faz-se exceção para a voz de Fachinelli, que a psicanálise italiana pôs sobre a obra de Lacan, à procura de uma integração própria com aquela degeneração universitária que Lacan estava denunciando.
O grupo de Basaglia não tomou em exame a paranóia a partir da clínica, de caso a caso, mas a partir da análise feita por uma certa sociologia americana. Em particular, Basaglia estudou o escrito de Norman Cameron The paranoid Pseudocommunity, no qual se afirmava que "o comportamento psicótico é o de reter em si o resultado ou a manifestação de uma desordem na comunicação entre indivíduo e sociedade". Mais precisamente, "paranóide é aquele que, em situação de stress não usual é impelido - a causa da sua insuficiente capacidade de aprendizagem social - a reações inadequadas... O paranóide organiza simbolicamente uma pseudocomunidade em cujas funções ele percebe como seu ser é focalizado". O psicótico seria, pois, qualquer um que reagisse de modo conflitante a essa "comunidade imaginada".
Basaglia utiliza essa análise de modo bem mais surpreendente: atribui a falsidade dessa "comunidade" ao vínculo social como tal (como se quase tivesse lido Lacan) e, em conseqüência, "coloca em questão o fato de que o indivíduo possa ser um dado suficiente ao estudo da paranóia". Mas trata-se somente de uma intuição não sustentada pela teoria e que, de fato, demonstra não conhecer a crítica lacaniana à fenomenologia do percipiens. Aqui não posso encontrar embasamento para tal intuição. Ao contrário, Basaglia passa a atacar a psicanálise como o saldo maior da concessão Kraepelimiana da psicose como "condição ou síndrome constituída por sintomas", cuja casualidade vem a ser encontrada na "prisão da evolução psicossexual".
A denúncia do preconceito de um percipiens como sujeito do fenômeno elementar psicótico vem, assim, tomar duas estradas opostas e diversamente críticas. Lacan, ao partir da experiência clínica da transferência, demonstra que a interpretação da alucinação ficou viciada pela atribuição preconceituosa ao sujeito da consciência e a reporta a um déficit do significante que organiza a separação do S1 de S2 e o ponto do fino fio que os conecte posteriormente. Portanto, trata-se da posição do sujeito na linguagem. Basaglia, ao invés, partindo da hipótese sociológica de uma pseudocomunidade paranóica, tende a colocar esse elemento cognitivo em um contexto de relações políticas, a fim de isolar nele a articulação real no fato de que "'os outros' reagem de modo diferente em seus confrontos, e essa reação, habitualmente, se não sempre, implica uma ação secretamente organizada e um comportamento conspirativo no sentido do tudo concreto".
Parece-me que o ensinamento que permanece válido da via basagliana em nível da clínica seja aquele que leva a distinguir, a opor conceitual-mente, a patologia - aquela que para Lacan é do sujeito, também na psicose - e o sintoma que, quando não chega a ser o parceiro do sujeito, é o que origina o tratamento do psicótico por parte dos "outros".

4- Uma contradição do pensamento de Basaglia
O ponto de fragilidade do ensinamento de Basaglia, a meu ver, está em uma linha de fratura que se mantém por todo arco de sua vida e que, creio, possa ser suturada com os instrumentos da psicanálise de Lacan. Como Lacan, Basaglia sempre esteve aderido ao seu lado psiquiatra, guiado pela sensibilidade e pela inteligência clínica, centradas sobre o sofrimento particular do doente. Na teoria, ao contrário, utilizou o discurso filosófico sem chegar a revertê-lo para seu interior. Podemos vê-lo na resposta que sempre deu à pergunta "Que coisa é a loucura?", a qual sempre respondeu em dois níveis, encontrando-se, assim, a necessidade de manter uma certa oscilação entre elas:
- "É a miséria, a indigência e a delinqüência, submete a mudança da linguagem racional da doença".
- "Não sei que coisa seja a loucura. Pode ser tudo e nada. É uma condição humana".
Esta última frase é de 1979, um ano antes de sua morte. Até o fim, manteve essa oscilação para combater, especularmente, a resposta psiquiátrica que diz "interrompemos a questão" e, no entanto, fala ao lugar do louco. Sua estratégia foi manter a loucura no âmbito enigmático de sua dramaticidade; mais precisamente, negar a loucura como produto social para poder encontrá-la como sofrimento.
Era uma estratégia; por trás disso estava a idéia de que se tratasse somente de uma etapa para a transição para uma sociedade mais justa e humana. A luta para a liberação dos loucos se unia àquela mais geral de liberar a sociedade inteira da invasão da lógica do lucro. Para Basaglia, para ser psiquiatra deve-se sair do próprio rol e confrontar-se com os problemas gerais da sociedade: "ou tem o corpo do poder ou tem o corpo de todos nós" e aquele do louco é um corpo que sofre, "traço de uma subjetividade que reage e refuta o cerco do qual é objeto".
Como se vê, tal estratégia leva Basaglia a homologar a loucura a um sintoma neurótico, a uma mensagem decifrável, em que a decifração será um "trabalho de transmissão" entre o que se pode considerar produto do internamento e isto que é o de reter-se o núcleo da originária doença. Como veremos, o trabalho de Basaglia se prende de frente a essa segunda parte.
Poder-se-ia reassumir o projeto como Foucault + "otimismo da prática": liberamos o silêncio do corpo como inexprimível e irracional e trazê-mo-lo na sociedade. E será a sociedade a transformar-se, a acolher o irracional como componente "normal" da vida social.
A falta daquela sutura ou, para melhor dizer, de uma operação de torção interna da linguagem que o ato de falar da loucura, sem "acercar" o louco, leva Basaglia a confiar só na prática. "A necessidade de uma nova 'ciência' e de uma nova 'teoria' se insere naquilo que impropriamente vem definido como 'vazio' ideológico e que, na realidade, é o momento feliz no qual se poderia começar a afrontar os problemas de modo diferente". É exatamente essa operação que Lacan pôde completar a partir do inconsciente Freudiano: no discurso do analista esse vazio é colocado na função, sem preenchê-la, como base estrutural que cava no Outro do saber um objeto causa de desejo. O desejo do analista vem do princípio de uma prática que, ao mesmo tempo, renova a teoria do sujeito e da loucura.
Isso nos leva a encontrar um ponto de aplicação na frase: "Eu creio que a história do homem seja um pouco a batalha entre o seu ser e o seu corpo: o homem, encarcerado no seu corpo, busca na substância viver em uma relação dialética entre o seu ser e o seu invólucro." É a dialética que preside a subjetivação e que Lacan, noSeminário XI, formaliza como alienação - separação -, centrando-a sobre a perda do gozo, introduzida pela alienação e sobre seu reconhecimento como mais-gozar (objeto a) na separação. Basaglia, ao invés, deve confiar a superação dessa dialética a uma ética social: "não pode ser que um corpo socialmente e realmente inserido", entretanto é o sistema produtivo que "identifica corpo social e corpo econômico". Ainda assim, comentando a foto de Che morto: "Tenta-se integrar o seu corpo morto no sistema que Che Guevara - morto ou vivo - continua a negar, e nós não queremos ser as testemunhas mudas deste segundo assassinato".
Em síntese, Basaglia intui que para derrubar o prevalecimento do discurso científico e a sua importância de universalização deva-se opor ao real tratado da ciência, aquele da contingência. Este porém, não vem formalizado como o real da clínica e fica, assim, confiado a uma ética que tende simplesmente a negá-lo ou talvez a sublimá-lo. É uma ética que o leva a formular duas imposições:
1- dar atenção ao particular, trabalhar sobre o que é específico da própria situação institucional, conhecer e responder as necessidades reais do usuário, individualizando, junto a ele, para restituir-lhe a subjetividade. Isso o leva a considerar que o principal obstáculo seja a frustração: "o trabalho em um hospital psiquiátrico em transformação não é, pois, tão revolucionário." Por isto ocorre:
2- sair do específico da psiquiatria para atacar a lógica do estado burguês: "[...] aquilo que nós temos afrontado é um problema mais vasto que se alarga a todos os setores, é o problema do qual toda a gente fala, aquele da própria liberação".

5 - Técnicos ou intelectuais?
A necessidade de fazer calar todos os discursos da psiquiatria deixou Basaglia privado de um discurso que fundasse a ética do operador: agente de uma revolução ou de uma "vanguarda"?
A ética de Basaglia pode ser lida como uma ética do sacrifício; ele fala de renúncia, de uma "escolha de autodestruição nossa, pessoal, ao serviço dos internados". Isso que nos impede de considerar essa autodestruição como figura do desejo é a constatação de que, no passar do universal ao particular, o operador encontra nela a frustração. Trata-se de uma passagem hipotizada como movimento subterrâneo, tenaz, mas infinita; uma revolução silenciosa através da qual a sociedade retornaria à loucura.
Mais realisticamente, Lacan não nos propõe um retorno da sociedade à loucura, a partir do momento em que esta já a contém - definitivamente como normalidade - mas um retorno do gozo, preso no círculo superegóico do capitalismo, ao desejo do sujeito. A análise não é o atravessamento das ilusões por meio das quais o gozo se põe como causa do desejo, a fim de que se produza um desejo que é, ao invés, desejo de saber. É o quanto se pode contrapor à técnica.
Nessas condições, parece-me que seja promissor que o ataque ao particular e a fidelidade à clínica que Basaglia nos ensinou se encontre com a ética da psicanálise, assim como Lacan a redescobriu, para não naufragar na moral do sacrifício ou da suportabilidade da frustração. Para concluir, queria passar, em resenha, os motivos da oposição basagliana à psicanálise e, com base neles, examinar essa hipótese de trabalho.
A psicanálise que Basaglia concebe era aproximada ao problema da doença mental à luz da via aberta por Jaspers (vide H. Hey). Essa se aplicava às "relações de compreensão" para deixar à ciência o fenômeno psíquico fundamental, o núcleo orgânico da doença. Lacan, rapidamente, refutou, com veemência, a ilusão desse dualismo e propôs novamente a hipótese de uma ciência que incluísse o inconsciente. Basaglia simplesmente refutou o compromisso maniqueista como "ciência burguesa".
Em conseqüência daquele compromisso, a psicanálise operava um auto circuito entre o doente e o terapeuta ("privatização do conflito"), ao invés de colocar a subjetividade em um circuito muito mais amplo, introduzindo o lugar do Outro como descentramento da relação intersubjetiva.
Em síntese, na refutação da psicanálise havia motivação do tipo histórico. A estratégia basagliana se opunha àquela que seguiam os psicanalistas não Laca-nianos que entravam nos hospitais psiquiátricos "paralisando neles os processos de mudança, aumentando os sistemas de aliança e reforçando a corporação dos psiquiatras". Por isso se constatava que, em nível político, o ingresso das teorias psicanalíticas permitiam modernizar e, depois, estreitar a instituição manicomial. A experiência francesa do setor era avaliada dessa forma.
Hoje estamos em um novo tempo, e trata-se de colocar à prova o dispositivo do discurso analítico como herdeiro daquele uso foucaultiano do senso histórico que encontramos na obra de Basaglia.
Pode-se dizer, em conclusão, que proponho um Lacan que interpreta o desejo de Basaglia, repropondo a loucura como limite da liberdade humana.


[Em 2008, Massimo Recalcati, em Milão, faz um enodamento do não encontro de Lacane  Basaglia, contemporâneos e abordando a mesma quastão - a clínica da psicose -, sem terem, contudo, estabelecido um diálogo. http://www.jonasonlus.it/multimedia/il-nodo-basaglia-sartre-lacan.html]

domingo, 28 de junho de 2015

Saúde Mental, Territórios e Subjetividade


[Em defesa da instituição especializada em subjetivação no âmbito do SUS]




Os serviços de Saúde Mental primam pela organização territorial, pois é a partir do território que se estabelecem limites geográficos e de cobertura populacional que ficam sob a responsabilidade clínica e sanitária das equipes e dos equipamentos especializados. Mas a noção geográfica de território, como espaço físico com limites precisos, é insuficiente para dar conta das relações sociais e as dinâmicas de poder que as pessoas e os grupos estabelecem entre si. É preciso introduzir aí a dimensão da subjetividade, e a concepção guattariana de territórios existenciais que podem ser individuais ou de grupo , que representam espaços e processos de circulação das subjetividades das pessoas, em permanente estado de configuração, desconfiguração e reconfiguração, ou seja, de possibilidades de agenciamento de subjetividade. Tanto dos usuários dos serviços de Saúde mental, quanto dos trabalhadores de Saúde mental, já que sua principal ferramenta de trabalho é a relação transferencial. As ações de Saúde Mental, portanto, devem ser ações complexas, planejadas para além do território geográfico, focando mais no espaço de convívio dos sujeitos, no estímulo à criação de novos modos de grupalidade, e nas relações sociais e afetivas ali desencadeadas.

Nas duas últimas décadas, a política de Saúde Mental no Brasil tem sido orientada pela luta antimanicomial. O risco de “institucionalização da vida” é apontado como um dos problemas a ser enfrentado na discussão sobre as formas de lidar com a loucura em nossa sociedade, evidenciando a necessidade de tratamentos que prezem pelo cuidado, pela valorização da ação dos portadores de sofrimento mental no mundo, e seu empoderamento, em detrimento dos modos de controle, imobilização e exclusão social tradicionalmente reservados aos chamados ''doentes mentais''. Nesse sentido, a noção de “território” joga um papel importante, mas tende a se restringir a seu aspecto puramente geográfico, quando se aposta na ideia de que o sujeito em tratamento na saúde Mental deve ter o mínimo de tutela necessário para sair da crise e aí o serviços especializado disporia de estratégias pontuais disponibilizadas prontamente para esse momento clínico , devendo ser logo direcionado para os equipamentos públicos de Saúde menos complexos. A instituição especializada é vista, nessa perspectiva, como potencialmente danosa manicomializante , passível de reproduzir as rotinas uniformizantes, as tarefas únicas e estereotipadas para todos os usuários, as respostas mínimas do ponto de vista material, afetivo e intelectual características do modelo manicomial.

A recente experiência do CAPUT demonstra-nos exatamente o contrário disso. Diante de uma conjuntura que se abre com o avanço político das forças conservadoras da Psiquiatria, dos projetos de privatização do SUS, com seu ostensivo financiamento público das comunidades terapêuticas, pautadas em um viés religioso, em detrimento do investimento na Rede de Atenção Psicossocial, percebe-se uma evidente dificuldade do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial de responder à atual política de drogas do Governo Dilma. Ataca-se um projeto ético e inovador como o CAPUT que encerrará suas atividades por suspensão do convênio com o SUS que o mantém há três anos , totalmente alinhado aos princípios da Reforma Psiquiátrica, sob a alegação de que se trata de uma comunidade terapêutica, “privatista, segregadora e higienista” ou uma clínica particular que ao ser financiada com recursos públicos “enfraquece a construção do SUS público, se distancia e desrespeita a rede de Saúde Mental do município”. A base do argumento de desqualificação do CAPUT feito pelos militantes da Luta Antimanicomial está, além de um injusto diagnóstico de desrespeito ao princípio do SUS de integralidade relacionada à condição integral, e não parcial, de compreensão do ser humano, ou seja, entendendo-o em seu contexto social , em um pretenso desrespeito ao princípio do SUS de territorialidade. 

O entendimento dos militantes pressupõe integralidade e territorialidade como “a articulação com a atenção primária, com a escola, com o local onde residem ou circulam os adolescentes, com outros equipamentos do território”, o que um serviço especializado não estaria apto a realizar. Por que a discriminação positiva de uma clientela desassistida até o momento, os adolescentes drogaditos e envolvidos em atos infracionais não mereceram uma política específica ou a especialização de um serviço de Saúde Mental seriam, por si só, segregadoras? E em que o modelo institucional não baseado na noção de território como equivalente a “área de abrangência” geográfica contraria a perspectiva de universalidade do SUS, quando não existe, há anos, investimento na ampliação da rede regionalizada de assistência? O conceito espacial de território limita a extensão do que seria territorialidade, que pressupõe um “habitar um território”, explorá-lo, torná-lo seu, ser sensível às suas questões, ser capaz de movimentar-se por ele e colocar em relação  fluxos diversos (cognitivos, políticos, comunicativos, afetivos, culturais, subjetivos).

Um serviço de Saúde mental pode ser “permeável”, portanto, desde que disponibilize recursos e ocasiões negociáveis aos operadores e usuários das políticas, ampliando o olhar e evitando circunscrevê-lo em uma gama limitada de ações fragmentadas. Basta que, mesmo se estiver localizado em uma instituição, não limite os modos de interação dentro daquele espaço, e que, ao contrário, permita a invenção de novos modos de vida, bem como a troca e o convívio com os recursos circunstantes, permitindo aos usuários que exerçam, por meio dos afetos, sua influência no território. Um manicômio não é um prédio, mas uma mentalidade de acomodação, restrição de estímulos, dessocialização, desinvestimento, resignação e massificação.

O conceito de território explorado por Milton Santos, em seu texto “A natureza do espaço: Técnica e tempo, razão e emoção”, de 1996, é pensado como algo que tem a ver com a relação dos sujeitos com aquele lugar, tudo aquilo que, não vindo diretamente da natureza, passa pelo processo de produção que somente o homem é capaz de desempenhar. O sujeito é o responsável por esse processo de uso, organização, configuração, normatização e racionalização do território à sua volta, ocupando-o, fazendo-o seu. Autores deleuzianos, como Rogério Haesbaert em especial, no seu texto de 2004 “O mito da desterritorialização: do ‘fim dos territórios’ à multiterritorialidade” fazem uma interpretação do conceito de território a partir do estabelecimento de poder político e das influências na identidade cultural das sociedades: a apropriação da identidade é uma marca forte da territorialidade. Felix Guattari e Suely Rolnik, em livro de 1996, “Micropolítica: cartografias do desejo”, afirmam, por sua vez, que “o território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente ‘em casa’. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma”. É possível, então, despreender o caráter político do território, em sua busca de autonomia, da concretude espacial, o que lhe garante maior fluidez, no que tange à projeção das relações sociais no espaço. Radicalizando para o plano psicológico, poderíamos acrescentar até que o ambiente de uma única pessoa (espaço de vida pessoal, hábitos) pode ser considerado como um “território”, a partir do qual a pessoa age ou para o qual se volta, que o delimita e o articula aos fluxos sociais. Ele é um conjunto de projetos e representações, é um agenciamento, posto que a primeira regra concreta dos agenciamentos é descobrir a territorialidade.

Deleuze e Guatari vão mais longe: uma aula é um território, porque para construí-la é necessário um agenciamento coletivo de enunciação e um agenciamento maquínico de corpos; a mão cria um território na ferramenta; a boca cria um território no seio... O conceito ganha essa amplitude porque ele diz respeito ao pensamento e ao desejo entendido aqui como uma força criadora, produtiva.

Podemos pensar, a partir disso, que levar à literalidade o respeito à singularidade do sujeito pode ser uma estratégia para manter uma instituição de saúde mental em posição de integralidade, universalidade, equidade e respeito à territorialidade, presentes na doutrina do SUS. Para que apareça algo singular do sujeito, tem que haver uma instituição que os receba do lugar de um Outro que não seja completo o Outro completo, seja como ideologia ou como instituição, tem regras pré-definidas, e exclui quem não se adapta a elas, ou seja, não tem lugar para acolher o desejo , pensando para cada sujeito, uma indicação terapêutica, um certo uso dos dispositivos institucionais, fora da lógica de um “programa” padronizado. É preciso que a instituição se dê ao trabalho de tomar cada paciente como um caso clínico e determinar estratégias próprias, fazendo exceção à regra, no caso a caso.

O CAPUT aprendeu com os mais de mil adolescentes que por lá passaram que a instituição especializada na subjetivação não segrega, que criar atividades especialmente pensadas para jovens populares urbanos favorece o vínculo com a instituição e a adesão ao tratamento, que a identificação imaginária sempre presente nos grupamentos juvenis pode ser um aliado terapêutico, que um serviço de Saúde Mental pode e deve ser um “QG da juventude”, um território próprio, sustentado pelo desejo de ter um lugar no mundo, de ter voz, de ter nome.

Uma vez que o SUS considera que pode prescindir do CAPUT, que saiba aproveitar a experiência clínica do CAPUT em sua rede, sua novíssima tecnologia. Belo Horizonte sempre esteve à frente das determinações programáticas, criando serviços antes que houvesse Portarias do Ministério da Saúde para institucionalizar os procedimentos. Estruturar o CAPS-i (aqui em BH chamado de CERSAMI) de forma mais ousada, para receber e criar vínculo com adolescentes usuários abusivos de drogas e envolvidos em atuações de risco, para intervir, para além do sintoma, em estruturas psíquicas mal alinhavadas, amarrando um eu onde o ato prevalece sobre a palavra, pode apresentar um início em uma ainda tímida política de Saúde Mental para a juventude. Montar projetos terapêuticos únicos. Estruturar a instituição a cada vez, para cada um que chega. Aceitar a queda dos ideais na contemporaneidade, para entender a ascensão dos objetos de consumo e de gozo, a prevalência do imaginário sobre o simbólico, e introduzir nos adolescentes um gosto pela fala.  Para que “desembole na ideia” (termo juvenil para se referir a resolver os problemas com o diálogo) o seu fantasma. Para que faça da instituição especializada, por meio da relação transferencial, um ponto inicial na rede de novos laços sociais. Para que encontre seu território.