domingo, 28 de junho de 2015

Saúde Mental, Territórios e Subjetividade


[Em defesa da instituição especializada em subjetivação no âmbito do SUS]




Os serviços de Saúde Mental primam pela organização territorial, pois é a partir do território que se estabelecem limites geográficos e de cobertura populacional que ficam sob a responsabilidade clínica e sanitária das equipes e dos equipamentos especializados. Mas a noção geográfica de território, como espaço físico com limites precisos, é insuficiente para dar conta das relações sociais e as dinâmicas de poder que as pessoas e os grupos estabelecem entre si. É preciso introduzir aí a dimensão da subjetividade, e a concepção guattariana de territórios existenciais que podem ser individuais ou de grupo , que representam espaços e processos de circulação das subjetividades das pessoas, em permanente estado de configuração, desconfiguração e reconfiguração, ou seja, de possibilidades de agenciamento de subjetividade. Tanto dos usuários dos serviços de Saúde mental, quanto dos trabalhadores de Saúde mental, já que sua principal ferramenta de trabalho é a relação transferencial. As ações de Saúde Mental, portanto, devem ser ações complexas, planejadas para além do território geográfico, focando mais no espaço de convívio dos sujeitos, no estímulo à criação de novos modos de grupalidade, e nas relações sociais e afetivas ali desencadeadas.

Nas duas últimas décadas, a política de Saúde Mental no Brasil tem sido orientada pela luta antimanicomial. O risco de “institucionalização da vida” é apontado como um dos problemas a ser enfrentado na discussão sobre as formas de lidar com a loucura em nossa sociedade, evidenciando a necessidade de tratamentos que prezem pelo cuidado, pela valorização da ação dos portadores de sofrimento mental no mundo, e seu empoderamento, em detrimento dos modos de controle, imobilização e exclusão social tradicionalmente reservados aos chamados ''doentes mentais''. Nesse sentido, a noção de “território” joga um papel importante, mas tende a se restringir a seu aspecto puramente geográfico, quando se aposta na ideia de que o sujeito em tratamento na saúde Mental deve ter o mínimo de tutela necessário para sair da crise e aí o serviços especializado disporia de estratégias pontuais disponibilizadas prontamente para esse momento clínico , devendo ser logo direcionado para os equipamentos públicos de Saúde menos complexos. A instituição especializada é vista, nessa perspectiva, como potencialmente danosa manicomializante , passível de reproduzir as rotinas uniformizantes, as tarefas únicas e estereotipadas para todos os usuários, as respostas mínimas do ponto de vista material, afetivo e intelectual características do modelo manicomial.

A recente experiência do CAPUT demonstra-nos exatamente o contrário disso. Diante de uma conjuntura que se abre com o avanço político das forças conservadoras da Psiquiatria, dos projetos de privatização do SUS, com seu ostensivo financiamento público das comunidades terapêuticas, pautadas em um viés religioso, em detrimento do investimento na Rede de Atenção Psicossocial, percebe-se uma evidente dificuldade do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial de responder à atual política de drogas do Governo Dilma. Ataca-se um projeto ético e inovador como o CAPUT que encerrará suas atividades por suspensão do convênio com o SUS que o mantém há três anos , totalmente alinhado aos princípios da Reforma Psiquiátrica, sob a alegação de que se trata de uma comunidade terapêutica, “privatista, segregadora e higienista” ou uma clínica particular que ao ser financiada com recursos públicos “enfraquece a construção do SUS público, se distancia e desrespeita a rede de Saúde Mental do município”. A base do argumento de desqualificação do CAPUT feito pelos militantes da Luta Antimanicomial está, além de um injusto diagnóstico de desrespeito ao princípio do SUS de integralidade relacionada à condição integral, e não parcial, de compreensão do ser humano, ou seja, entendendo-o em seu contexto social , em um pretenso desrespeito ao princípio do SUS de territorialidade. 

O entendimento dos militantes pressupõe integralidade e territorialidade como “a articulação com a atenção primária, com a escola, com o local onde residem ou circulam os adolescentes, com outros equipamentos do território”, o que um serviço especializado não estaria apto a realizar. Por que a discriminação positiva de uma clientela desassistida até o momento, os adolescentes drogaditos e envolvidos em atos infracionais não mereceram uma política específica ou a especialização de um serviço de Saúde Mental seriam, por si só, segregadoras? E em que o modelo institucional não baseado na noção de território como equivalente a “área de abrangência” geográfica contraria a perspectiva de universalidade do SUS, quando não existe, há anos, investimento na ampliação da rede regionalizada de assistência? O conceito espacial de território limita a extensão do que seria territorialidade, que pressupõe um “habitar um território”, explorá-lo, torná-lo seu, ser sensível às suas questões, ser capaz de movimentar-se por ele e colocar em relação  fluxos diversos (cognitivos, políticos, comunicativos, afetivos, culturais, subjetivos).

Um serviço de Saúde mental pode ser “permeável”, portanto, desde que disponibilize recursos e ocasiões negociáveis aos operadores e usuários das políticas, ampliando o olhar e evitando circunscrevê-lo em uma gama limitada de ações fragmentadas. Basta que, mesmo se estiver localizado em uma instituição, não limite os modos de interação dentro daquele espaço, e que, ao contrário, permita a invenção de novos modos de vida, bem como a troca e o convívio com os recursos circunstantes, permitindo aos usuários que exerçam, por meio dos afetos, sua influência no território. Um manicômio não é um prédio, mas uma mentalidade de acomodação, restrição de estímulos, dessocialização, desinvestimento, resignação e massificação.

O conceito de território explorado por Milton Santos, em seu texto “A natureza do espaço: Técnica e tempo, razão e emoção”, de 1996, é pensado como algo que tem a ver com a relação dos sujeitos com aquele lugar, tudo aquilo que, não vindo diretamente da natureza, passa pelo processo de produção que somente o homem é capaz de desempenhar. O sujeito é o responsável por esse processo de uso, organização, configuração, normatização e racionalização do território à sua volta, ocupando-o, fazendo-o seu. Autores deleuzianos, como Rogério Haesbaert em especial, no seu texto de 2004 “O mito da desterritorialização: do ‘fim dos territórios’ à multiterritorialidade” fazem uma interpretação do conceito de território a partir do estabelecimento de poder político e das influências na identidade cultural das sociedades: a apropriação da identidade é uma marca forte da territorialidade. Felix Guattari e Suely Rolnik, em livro de 1996, “Micropolítica: cartografias do desejo”, afirmam, por sua vez, que “o território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente ‘em casa’. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma”. É possível, então, despreender o caráter político do território, em sua busca de autonomia, da concretude espacial, o que lhe garante maior fluidez, no que tange à projeção das relações sociais no espaço. Radicalizando para o plano psicológico, poderíamos acrescentar até que o ambiente de uma única pessoa (espaço de vida pessoal, hábitos) pode ser considerado como um “território”, a partir do qual a pessoa age ou para o qual se volta, que o delimita e o articula aos fluxos sociais. Ele é um conjunto de projetos e representações, é um agenciamento, posto que a primeira regra concreta dos agenciamentos é descobrir a territorialidade.

Deleuze e Guatari vão mais longe: uma aula é um território, porque para construí-la é necessário um agenciamento coletivo de enunciação e um agenciamento maquínico de corpos; a mão cria um território na ferramenta; a boca cria um território no seio... O conceito ganha essa amplitude porque ele diz respeito ao pensamento e ao desejo entendido aqui como uma força criadora, produtiva.

Podemos pensar, a partir disso, que levar à literalidade o respeito à singularidade do sujeito pode ser uma estratégia para manter uma instituição de saúde mental em posição de integralidade, universalidade, equidade e respeito à territorialidade, presentes na doutrina do SUS. Para que apareça algo singular do sujeito, tem que haver uma instituição que os receba do lugar de um Outro que não seja completo o Outro completo, seja como ideologia ou como instituição, tem regras pré-definidas, e exclui quem não se adapta a elas, ou seja, não tem lugar para acolher o desejo , pensando para cada sujeito, uma indicação terapêutica, um certo uso dos dispositivos institucionais, fora da lógica de um “programa” padronizado. É preciso que a instituição se dê ao trabalho de tomar cada paciente como um caso clínico e determinar estratégias próprias, fazendo exceção à regra, no caso a caso.

O CAPUT aprendeu com os mais de mil adolescentes que por lá passaram que a instituição especializada na subjetivação não segrega, que criar atividades especialmente pensadas para jovens populares urbanos favorece o vínculo com a instituição e a adesão ao tratamento, que a identificação imaginária sempre presente nos grupamentos juvenis pode ser um aliado terapêutico, que um serviço de Saúde Mental pode e deve ser um “QG da juventude”, um território próprio, sustentado pelo desejo de ter um lugar no mundo, de ter voz, de ter nome.

Uma vez que o SUS considera que pode prescindir do CAPUT, que saiba aproveitar a experiência clínica do CAPUT em sua rede, sua novíssima tecnologia. Belo Horizonte sempre esteve à frente das determinações programáticas, criando serviços antes que houvesse Portarias do Ministério da Saúde para institucionalizar os procedimentos. Estruturar o CAPS-i (aqui em BH chamado de CERSAMI) de forma mais ousada, para receber e criar vínculo com adolescentes usuários abusivos de drogas e envolvidos em atuações de risco, para intervir, para além do sintoma, em estruturas psíquicas mal alinhavadas, amarrando um eu onde o ato prevalece sobre a palavra, pode apresentar um início em uma ainda tímida política de Saúde Mental para a juventude. Montar projetos terapêuticos únicos. Estruturar a instituição a cada vez, para cada um que chega. Aceitar a queda dos ideais na contemporaneidade, para entender a ascensão dos objetos de consumo e de gozo, a prevalência do imaginário sobre o simbólico, e introduzir nos adolescentes um gosto pela fala.  Para que “desembole na ideia” (termo juvenil para se referir a resolver os problemas com o diálogo) o seu fantasma. Para que faça da instituição especializada, por meio da relação transferencial, um ponto inicial na rede de novos laços sociais. Para que encontre seu território.


segunda-feira, 22 de junho de 2015

Redução de Danos, Política e Psicanálise


As estratégias de Redução de Danos entraram na pauta das políticas públicas no Brasil no final do século passado - referida à preocupação com a transmissão do HIV -, passando a constituir-se como a principal forma de atenção ao usuário abusivo de drogas a partir de 2003, quando o Ministério da Saúde publicou sua Política de Atenção aos Usuários de Álcool e outras Drogas. O foco passou a ser todos os danos evitáveis do uso de drogas: danos em território, danos à saúde, danos sociais. E a ação não se restringia à distribuição de insumos de saúde, mas apostava na presença constante da equipe junto aos usuários. 

“Parar de fumar para conversar” já adiava o uso da droga. A equipe, agindo como ponte, lançava uma aposta no laço social. E uma população à margem do sistema de saúde podia se inserir na rede. Uma vez na rede, novas estratégias foram criadas, além do adiamento do uso: abstinência de uma das drogas de uso, acompanhamento das famílias, tratamento das comorbidades, uso controlado, etc. 

Houve um processo de ampliação e definição da Redução de Danos como um novo paradigma ético, clínico e político para a política pública brasileira de saúde de álcool e outras drogas, em oposição às políticas antidrogas que tiveram suas bases fundadas no período ditatorial. Não por coincidência, há uma proximidade entre a política antidrogas e o paradigma da abstinência. A abstinência é um eixo articulador entre a justiça, a psiquiatria e a moral religiosa que, em sua articulação, definem uma política de tratamento, um paradigma, que se realiza sob a forma de instituições coercitivas, em tudo diversas do que propõe a Redução de Danos. 

Não há dúvidas do avanço que representou a política de Redução de Danos na Saúde Pública. A comparação com os outros modelos a coloca em posição ética inquestionável. O modelo jurídico-moral, assentado em uma visão dualista da realidade, aponta para medidas “educativas” e preventivas, articuladas a princípios repressivos. O modelo médico, à semelhança de como lida com as doenças infecciosas, trata a droga como “agente”, e o indivíduo como “hospedeiro”. No modelo sociocultural, por outro lado, a droga adquire significado e importância não tanto pelas suas propriedades, mas pela maneira como cada sociedade define sua utilização, e o uso de drogas ilícitas é visto como um desvio do comportamento normal. 

Os tratamentos em nosso meio seguem esses modelos, e constituem-se basicamente de abordagens médico-farmacológicas (hospitalização para desintoxicação e tratamento de doenças relacionadas à dependência; tratamento psiquiátrico convencional; uso de drogas psiquiátricas; tratamento não-psiquiátrico com clínico geral; terapia de manutenção com opiáceos e terapias com antagonistas), terapia comportamental e aconselhamentos baseados no uso da autoridade racional. Por seu turno, as abordagens socioculturais (metodologias seguidas pelas Comunidades Terapêuticas e os Grupos de Narcóticos Anônimos), resvalam quase sempre para intervenções baseadas em abordagens religiosas, ainda que possa se incluir o trabalho de médicos e psicólogos, quase sempre travestidos de “conselheiros”. 

A proposta do CAPUT segue outra política. A política da psicanálise, que é o sintoma. Percebemos a droga como algo que produz no corpo uma experiência de excesso, mas nos interessamos menos pela droga, e mais por esse gozo do corpo. Nesse sentido, adotamos a posição do avesso: do avesso do discurso do mestre, e da invalidação das reivindicações contra o discurso do mestre (em “Televisão”, Lacan explica que protestar contra o discurso do mestre já é entrar nele, mesmo que seja a título de protesto). Que mestre? A Ciência, o Saber Médico, o Mercado, a Moda, a Tecnologia... E - por que não? - as Políticas de Saúde. Ou seja, tudo que universaliza. Podemos entender - sem qualquer julgamento de valor -, por exemplo, a “Política de Atenção aos Usuários de Álcool e outras Drogas” como uma universalização, e não é sem motivo que ela leva a uma universalização na proposta de tratamento: Redução de Danos . No modelo científico, a drogadição é doença, e a cura é abstinência. E assim por diante...  

A universalização engendra a segregação, nega o particular, o singular. A Psicanálise maneja as discordâncias ao mudar o discurso, a maneira de dizer. Contra a “eficácia” do todo, se apóia na lógica da fronteira, do não-todo, da vizinhança. Então, não se trata d’A Droga, mas de cada droga, para cada sujeito. Isso é a noção de vizinhança. Não há solução universal, teremos que passar ao múltiplo, a uma tolerância em relação ao impossível. Isso equivale a escutar os usuários um a um. Montar projetos terapêuticos únicos. Estruturar a instituição a cada vez, para cada um que chega. Aceitar a queda dos ideais na contemporaneidade, para entender a ascensão dos objetos de consumo e de gozo, a prevalência do imaginário sobre o simbólico, e introduzir nos adolescentes um gosto pela fala.  Para que produza seu sintoma. Para que “desembole na ideia” (termo juvenil para se referir a resolver os problemas com o diálogo) o seu fantasma. 

Nesse sentido, ao não colocar em primeiro plano um ideal – o da abstinência, por exemplo – estaríamos mais próximos de uma política de redução de danos (em letras minúsculas), daquilo que é possível para cada um, em cada momento, na invenção de soluções parciais. Ou de “redução de gozo”, para ser mais lacaniano.




domingo, 21 de junho de 2015

Christina Fornaciari e o corpo remexido

Christina Fornaciari propõe reflexões acerca do corpo como lugar de expressão e experiência estético-política. O corpo é esse elemento mediador de vivências, e o artista, na oficina que ela propõe no Caput, não é um "criador de objetos", nem o adolescente-aluno um passivo fruidor da arte. O oficineiro é um propositor de ações, um ativador de experiências, cuja estética sensorial se enlaça na ação do outro. Uma estética relacional como conceitua Nicolas Bourriaud, que produz modos de sociabilidade entre os adolescentes.Imprevisível e inconstante como seu público. Tudo converge para um único lugar: o corpo. O corpo como espaço de potência. Um corpo em processo, produzido no fazer. "É na falta de solução, que o corpo se resolve", explica Christina acerca de uma dimensão da existência que se dá na experimentação.



Invenção: o divertido "andar de John Lennon" permite circular pela cidade hostil. Um jovem assustado com o Olhar do Outro, com o julgamento, a crítica, o enigma do que o Outro quer de nós. Um novo uso do corpo cria uma nova narrativa, e um modo de ocupação da cidade mais confiante. Fazer um andar/fazer-se John Lennon recria a relação com o Olhar do Mundo e com a autoimagem.





Atividade "Se eu fosse Francis Bacon", a partir de desenhos desse pintor feitos na década de 1980, que foram presenteados ao seu então namorado, o jornalista italiano Cristiano Lovatelli-Ravarino, e só mostrados ao público em 2000. Na oficina, além de conhecer a obra, falou-se da vida de Bacon, e da sua inspiração em tabus e dores humanas. O esforço, sem verbalização, foi o de usar a técnica com que Bacon criava seus desenhos (um fundo com cores lisas, feito com colagem, sobre o qual se insere o desenho a lápis) e o de buscar trazer para o trabalho os próprios conflitos dos meninos, o que seria tabu para eles.





Performance "O corpo e a casa", inspirada no trabalho do Nino Cais. Sem resgatar a memória de uma casa específica, os adolescentes trabalharam com a ideia da casa como um fruto da imaginação, se relacionando, física e afetivamente, com alguns objetos domésticos: flores, eltrodomésticos, cheleira, bule, vassourinha, avental, espanador, pano de prato... Autorretrato. Esculturas. O rosto escondido, o corpo como parte de uma montagem. Camuflagem (o rosto em meio a massas, cores, volumes e texturas). Jogo doméstico com os objetos do dia a dia. os objetos convidam o corpo a estar ali. O corpo existe como um imã, que capta as coisas do entorno. Corpo-coisa. Corpo-pedestal. Corpo-base. 






"Invisibilidade social": releitura de Paulo Nazareth. A atividade da oficina foi orientada por uma pesquisa da obra desse artista, escolhendo especificamente uma forma de expressão que "apaga" o rosto. Isso se deveu ao fato de um dos meninos ter chegado com a cabeça e as sobrancelhas totalmente raspadas, dizendo que era para mostrar que estava "bolado", "revoltado". Rosto raspado = revolta. A arte apresenta outros modos de representar a revolta. 


"Intervenções na natureza", inspirada pela obra de João Castilho. Alfinete, grampo, papel, fita. O jardim do Caput ganha esculturas inusitadas, efêmeras, objetos rasgados e costurados, rompidos e colados, deslocados e restaurados. Linhas e pontos. Conflito e diálogo. Furos, frestas, recombinações. Natureza e artefatos.





"Esculturas de 1 minuto", inspiradas em Erwin Wurm. Equilíbrio instável. A força do corpo sobre as leis da gravidade, gerando novas relações com os objetos e questionando a própria definição de escultura. A insustentabilidade (tema que os adolescentes do Caput conhecem bem, da própria vida)








"Carinho no saquinho". Intervenção na cidade. Quem é visto como aquele que tira agora dá (carinho). Tudo foi criação dos meninos, motivados pela Christina, a partir de uma ideia do Luís Couto, psiquiatra do Caput, que sugeriu que experimentassem intervir na rua, para ver a reação das pessoas à aproximação deles (os meninos trazem sempre essa questão de como são vistos na cidade: como incômodo ou como ameaça). Os adolescentes falam sobre ser jovem, negro e pobre na nossa cidade: "as pessoas, só de ver a gente na rua, já saem pro lado, como se a gente fosse assaltar elas...se eu fosse playboy branquinho, não tinha nada disso"... A ideia da intervenção era provocar surpresa com um gesto gentil e palavras positivas, que resultou nesses saquinhos. O nome da atividade é pura irreverência adolescente. 







O jenipapo é fruto do jenipapeiro (Genipa americana), tendo sofrido uma transmutação do G, do nome científico, em J da linguagem vulgar. Para aumentar a confusão vem "O Pato", de Vinicius, com jota, e o "Genipapo Absoluto", do Caetano, com gê. Pelas regras da ortografia, usa-se o jota nas palavras de origem indígena, africana ou árabe, o que explica a transformação da nossa genipa em jenipapo, configurando-se portanto esta grafia com G em autêntica e perigosa subversão de valores.
Christina Fornaciari fez uma "oficina de jenipapo". Levou tinta da fruta, explicou o processo de feitura dessa tinta e contou que ela é usada pelos índios como tatuagem natural, aplicada em rituais de guerra, fertilidade, etc... e que a pintura sai da pele em mais ou menos 2 semanas. A própria Christina estava com desenhos feitos em seu corpo pela Maria, uma índia da etnia Pataxó.
Alguns adolescentes do Caput quiseram se tatuar, outros desenvolveram uma técnica muito interessante de desenho com barbante embebido na tinta de jenipapo e depois transferido para o papel. O resultado? Elegante, delicado e doce, como tudo o que vem do jenipapeiro ( e da Christina)...

"Como será pois se ardiam fogueiras 
Com olhos de areia quem viu
Praias, paixões fevereiras
Não dizem o que junhos de fumaça e frio
Onde e quando é genipapo absoluto
Meu pai, seu tanino, seu mel
Prensa, esperança, sofrer prazeria
Promessa, poesia, Mabel" (Caetano Veloso)




"Lá vem o Pato
Pata aqui, pata acolá
Lá vem o Pato
Para ver o que é que há
(...)
Comeu um pedaço
De jenipapo
Ficou engasgado
Com dor no papo
Caiu no poço
Quebrou a tigela
Tantas fez o moço
Que foi pra panela" (Vinicius de Morais)

sábado, 13 de junho de 2015

Continuidade

No dia 29 de setembro de 2012, o CAPUT iniciou suas atividades. Misto de projeto social e clínica psicanalítica, o novo serviço surpreendeu até mesmo seus realizadores, pelo alcance que teve junto ao público juvenil. Pela primeira vez na cidade, adolescentes com histórico social e psíquico complicado não só aderiam, como demandavam atendimento.
"Aqui vocês perguntam, não fazem igual nos outros lugares, que parece que o pessoal já sabe quem a gente é, qual é o problema da gente, e sai tacando remédio", disse nosso primeiro paciente, "Dá um jeito aí, se eu não parar com a cocaína, vou morrer; tenho que pedir é aqui mesmo, porque é o CAPUT que faz o que minha família devia fazer", afirmou outro, em momento de crise, na semana passada.
São várias histórias de construção de um PROJETO DE VIDA, diferente daquele que parece ser o destino de quem é jovem, pobre e negro, e que tem passagem pelo tráfico de drogas, os famosos 3 "C": cadeia, cadeira de rodas ou caixão.
Hoje, com 194 adolescentes entre 14 e 18 anos, provenientes de todos os cantos da cidade - e sem outro lugar para se tratar sequer próximo do que se tornou o CAPUT para eles - estamos aguardando a definição da continuidade do projeto, que sairá de uma reunião decisiva, da qual participam os responsáveis pelo financiamento do serviço.
Como dizem nossos meninos, tomara que a parada não amargue, que não role treta e que fique tudo pela ordi!

Festas no Caput

  

Os Toxicosplasmoses: Festa de fim de ano no Caput! Um momento emocionante do lançamento mundial da banda "Os Toxicosplasmoses". A banda era composta pelos psicólogos e psiquiatras do Caput, que quiseram homenagear os adolescentes que fazem tratamento na instituição - nesse dia, estavam presentes 44 deles -, com sua música.
O carinho foi bem recebido, já a música...
(segundo alguns meninos, aquilo era "rock 'n' Roll, música de velho")




Depois do show dos Toxicosplasmoses, um bailinho, que ninguém é de ferro...




Já a festa "Mil Fita Caput Fest" foi um encontro para assistir ao primeiro filme produzido pela oficina de Cinema do Caput, "Fantasma", do Gustavo Jardim. 


Tem mil problemas, mil fitas, mil capa pra embaçar

Mil bala pra atirar, mil revólver pra comprar
Mil quilos pra vender, mais de mil pra vim pagar
Vi uns mil morrer assim, mil motivos pra parar




O encontro fora da rotina da instituição, em uma festa, apresenta e revela outras formas de sociabilidade, outras facilidades de expressão. Quem nunca fala, canta. Quem não se mexe, dança. Quem não é nada, pode se sentir um MC. 


Por estar ligada a algo do desregramento de todos os sentidos, a adolescência é o tempo da criação, da arte, o tempo em que o jovem sujeito tenta encontrar aquilo que de seu ser pode se traduzir à sua maneira.

Como um corpo enoda a linguagem?

Como o adolescente lida com os efeitos do encontro do sujeito com o desejo sexual?

Qual é sua margem de manobra entre os sobressaltos que surgem e a herança de sua infância?

[questões do Lacadée que nos vieram à mente durante a MIL FITA CAPUT FEST, que aconteceu no dia 8 de abril]



 


Não é à toa que os meninos do CAPUT se vinculam ao tratamento, que produz atos analíticos tão bem vindos, atos analíticos amorosos, advindos de um amor que nos faz não recuar diante do Real. Há uma coragem nessa equipe, que é fruto de um desejo de analista muito digno: um desejo que surge na beira do precipício, entre o Simbólico e o Real, um desejo que sustenta o laço social necessário para que esses jovens não sucumbam. 


(festa cubana no CAPUT: ritmos e sabores revolucionários)

O CAPUT é essa rumba, essa dança generosa que ativa a potência de vida. Assim seja. Saravá, Amém e Salve! Salve!

A festa, ato coletivo por excelência, é não só o elemento que enfeixa e organiza todos os acontecimentos do CAPUT, mas também o espaço privilegiado que arranca da destruição e da morte o tempo da experiência. Longe de comemorar uma memória imediata, a festa assinala um momento acima do tempo e da crise, possibilitando o resgate do irredimido e do irrealizado. Desde a tradição da poesia oral na Grécia arcaica, em que o canto do poeta instaura realidade ao mundo,encontramos Tália, a deusa festa - uma das musas, as filhas da Memória -, como condição social da existência da poesia.

"Uma festa é que devia de durar sempre sem-fim; mas o que há, de rente, de todo dia, é o trabalho" (Guimarães Rosa, "Uma estória de amor").

Ao trabalho, então, moçada! 

MUDAnça [o jardim dançante de Núria Manresa]






   Projeto "MUDAnça" é a oficina da Núria Manresa, arquiteta e paisagista, com os meninos do CAPUT. Estão, há meses, envolvidos com nosso jardim de inverno. No primeiro dia de oficina, trocaram opiniões sobre possibilidades, conversaram e colocaram as ideias no papel. Alguns meninos fizeram desenhos relacionados com o espaço, organizando algumas das ideias discutidas, entre elas, vasos suspensos pendurados no pergolado, hera e graffiti na parede. Outros meninos, enquanto isso, faziam objetos decorativos (pires pintado, colar de canudinhos, pintura de base das das latas de spray que servirão como vasos). No segundo dia, os meninos pintaram com cores as latas que estavam com primer branco, furaram o fundo de algumas latas e começaram atecer um macramê com o cordão de rolo que servirá para pendurar as latas no pergolado. No terceiro dia, acabou-se de furar as latas, plantar as suculentas, tecer o macramê, finalizando o jardim suspenso, que é a primeira etapa do projeto. 


 A segunda etapa foi dar conta dos canteiros (erva daninha roxa, hera e espada de São Jorge) e do piso de pallets e da parede do fundo.O projeto de um deck feito com pallets, com espaço para plantas, vem sendo desenvolvido há semanas. Chegou a hora da execução.
O pallet utilizado para viabilizar a otimização do transporte de cargas em espaços comerciais é reinventado pelos meninos do CAPUT para significar, por sua obra, um saber-fazer pessoal. Como diria Michel de Certeau, trabalhar com a reciclagem, a sucata, realiza "golpes" no terreno da ordem estabelecida, desvia para fins próprios, com criatividade e liberdade (principalmente por não estar preso a fins lucrativos), o que estava a serviço do capital. Uma generosa economia do dom, uma ética da invenção de novos usos se opondo ao que se destina ao tempo curto do descarte.
Trabalho ao som do funk, quase-dança: gratuita e alegre.
A intervenção proposta por sua oficina transcende sua locação imediata e remete ao território da infância, da instabilidade adolescente, da reconfiguração do espaço de tratamento.
Por fim, uma gangorra.
Para provocar nossa percepção para situações não óbvias. Para estimular um jogo de dois, do que balança e do que empurra. Para convidar o corpo ao vaivém. Para revelar a alegria.









Oficina de graffiti [com Pedro Ninja]