domingo, 26 de julho de 2015

Basaglia com Lacan



Texto de Carlo Viganò publicado na Revista Mental [Mental v.4 n.6 Barbacena jun. 2006]

A reflexão que proponho é a da conjunção entre a experiência de Basaglia e o ensinamento de Lacan. Apesar de a mim não parecer que esses nunca tenham se encontrado e que, também, na obra escrita seria muito mais árduo encontrar convergências, todavia me parece que, quanto ao que transmitiram, a dimensão ética que souberam dar à loucura, há uma marca, uma direção comum e capaz de potencializar-se reciprocamente. Pelo menos esta é a minha experiência na qual gostaria de encontrar as razões.
A ligação entre as duas obras nos é confiada. A quem puder extrair da experiência basagliana um ensinamento, proponho fixá-lo em um aforisma que parafraseia aquilo com o que Lacan ligou a obra de Freud com a de Saussure: se Basaglia tivesse lido Lacan, haveria dito que o fechamento dos manicômios é uma troca de discurso e que o discurso do analista pode motivar "a posteriori" essa passagem (aquela que Lacan chamou passe). É uma afirmação difícil de sustentar ao se pensar na feroz oposição basagliana à psicanálise. Para fazê-la, deverei mostrar como o ensinamento de Lacan traçou um sulco essencial no terreno da saúde mental.

1- A abertura do manicômio
Somos habituados a pensar a abolição do manicômio como o maior êxito da obra de Basaglia, mas isto acaba por reduzir sua intervenção a um mero fato legislativo. Seria como considerar que a contribuição essencial da psicanálise para a cura da doença mental tenha sido a promoção da lei de 1989 sobre Ordem das Psicologias e o reconhecimento do psicoterapeuta. Em ambos os casos, a relação entre a "reforma do entendimento" e a reforma legislativa se prestam a considerações contraditórias, no momento em que a novidade introduzida pela lei tende a fechar propriamente o princípio nuclear do pensamento que se supõe havê-la inspirado.
Pode-se dizer, de fato, que as novas ordens são criadas jogando fora da bacia, junto com a água suja, também o bebê: a Medicina fala abertamente do discurso do louco, assim como a Psicologia fala do discurso do analista, isto é do seu desejo.
Vejamos tal questão de acordo com esse efeito de fechamento. Pode-se intuir, facilmente, que essas mudanças em nível legislativo e, de conseqüência, da organização social dos tratamentos, antes mesmo de modificar o tratamento da doença mental, introduzem uma rebelião em nível da clínica. É um fenômeno histórico do qual Foucault já havia estudado os episódios precedentes, em particular aquele que leva verdadeiramente ao "nascimento" da clínica, isto é, a uma nova e inédita visibilidade daquilo que é a doença. A mudança da organização social encontra, no início do século XIX, na anatomia patológica, o instrumento científico para inventar a forma moderna da doença.
Para reportar essa estrutura histórica ao nosso caso, parece-me útil, também, uma outra referência: a antropologia de Levy-Strauss. Ele nos mostrou como as classificações sociais - e aqui podemos colocar também a classificação das doenças - tendem a persistir mesmo depois que tenham passado por substanciais mudanças demográficas. A exemplo, o nome de uma tribo que se extingue virá a designar um subgrupo de outra tribo que, se torna muito maior. Tudo isto para colocar-nos atentos sobre uma aparente continuidade entre a abertura do manicômio e as políticas de saúde mental (com um jogo de palavras podemos dizer: de fechamento de manicômio) ou entre psicanálise aplicada à saúde mental e psicoterapia.
Um pequeno sinal de que se está produzindo mudança em clínica pode ser encontrado na substituição do termo "doença" como "incômodo" e a um outro nível - como "distúrbio de personalidade". A aparente desmedicalização revela, subitamente, uma outra face: a do exponencial acréscimo no investimento terapêutico do mal-estar social. Põe-se ao lado dos médicos toda uma série de outros terapeutas.
Em outros termos, o adiamento dos processos terapêuticos tende a ocultar, se não a tornar a enviar no real o intratável, as mudanças da clínica. Veremos como a obra de Basaglia se aproxima da de Lacan, no que se refere ao esforço de caminhar do outro lado da terapia para tornar atual e transmissível a novidade clínica.

2- Antipsiquiatria, antipsicanálise?
Nos anos 60, o ensinamento e a experimentação de uma gestão psiquiátrica alternativa, iniciada em Gorizia, aglutinou em torno de Basaglia um movimento próprio, verdadeiro e antecipador daquele, legado às hipóteses de gestão alternativa de uma outra instituição, a Universidade. Não creio que o efeito de antecipação vá ser procurado em uma analogia qualquer entre a instituição manicomial e a universitária, mas no próprio fato de que, no manicômio, uma experimentação alternativa assim se articulasse estreitamente com um ensinamento. O manicômio, escola de vida social e de transformações culturais. Veremos como na França, nos mesmos anos, encontra-se essa particular ligação entre a experimentação de uma gestão alternativa da instituição analítica e o ensinamento de Lacan. Veremos como essa vizinhança estrutural teve um peso que tende a tornar-se histórico, para citar o witz Lacaniano quando falava do emoi de mai.
O ensinamento de Basaglia tinha, ao menos, duas raízes:
- a denúncia do tratamento dos doentes mentais, que os privava de todo direito humano e os fechava em lugares de exclusão social. Tal tratamento não só não curava, mas reforçava o estado de marginalização dos internados. Essa denúncia torna-se um paradigma daquela mais geral da sociedade neocapitalista, se formada sobre o terreno da clínica;
- a abertura da psicologia marcada, primeiramente, pela fenomenologia e, depois, pelo existencialismo - as teorias sociológicas anglo-saxônicas que se demonstravam subversivas à psicologia enquanto tal.
A dimensão social vinha sendo sentida como capaz de revolucionar para si a concessão da veiculada subjetividade da psiquiatria. Devemos notar que nesse movimento vem assimilado tudo o que era "psico", e a psicanálise foi totalmente envolvida na contestação da psiquiatria, de cuja ideologia era considerada a expressão mais refinada.
Creio que para essa assimilação concorreram dois elementos. De uma parte, a política geral (isto é, da oficialidade IPA) da psicanálise apontava a conquistar para si um posto nas instituições universitárias e de tratamento, misturando-se com as disciplinas psiquiátricas e psicológicas. De outra parte - e de conseqüência - o alvo da contestação não pode ser, como logicamente deveria ser, a concessão psicológica inerente à psiquiatria, para o próprio fato de que essa ficava implícita. A psiquiatria, isto é, o receptáculo prático e institucional de todas as teorias psicológicas, compreendida a psicanálise - de Musatti a padre Gemelli.
Devo precisar rápido que para seguir o meu fio, que é aquele da ligação, devo novamente remeter o exame da valorização histórica que Basaglia tinha da psicanálise e, depois, dos motivos pelos quais não a retinha como aliada útil. Faço, pois, a hipótese de que, na Itália, a obra de Basaglia pode assumir - do exterior - aquele dever de denunciar desvios e erros da psicanálise que, na França, o ensinamento de Lacan tinha inicia- do proclamando - do interior - a necessidade de retornar a Freud.

3- Paranóia e instituição
Em 1969, Lacan, em pleno clima de contestação, vai a Vincenne para falar aos estudantes e tenta explicar a eles onde a Universidade os está traindo. Naquele ano está se formalizando a estrutura do vínculo social, que chama de "discurso", a partir daquele fundamental - o discurso do Mestre - que se articula como "o avesso da psicanálise". Essa oposição é a base para se estabelecer o lugar de outros dois discursos: o discurso da histérica e o Universitário. Quatro discursos e não mais; e a passagem de um para o outro consiste em um quarto de giro de quatro elementos (sempre aqueles: S1, S2, a, S), em quatro posições fixas: o agente, o Outro, o produto e a verdade.
A perversão contemporânea do discurso universitário é ligada à sua contaminação com o discurso do Mestre: o saber (S2) posto no lugar de comando, fora do seu contexto discursivo, e o caminho à sua incorporação com S1.
Essas perversões das estruturas discursivas, produzidas pelo saber da ciência, são características do capitalismo que age sobre o discurso humano, abolindo a impossibilidade lógica do mesmo discurso, aquela da relação entre produto e verdade. A revolução que Lacan propõe é a que faz o giro dos quatro discursos. Ao repassar para o discurso do analista, pode-se recuperar, também para o saber, um lugar que não seja de poder e, assim, devolver à universidade a capacidade discursiva de produzir sujeitos divididos ao invés de professores.
A afirmação de Lacan é explícita: o lugar e a função da psicanálise no social são aquelas de boucler, o giro revolucionário dos discursos. O matema do discurso serve a Lacan para selar, definitivamente, o fato de que o vínculo social não se baseia sobre a intersubjetividade, mas sobre a mesma estrutura do sujeito. O inconsciente é relação com o Outro, discurso do Outro, que não se pode reduzir à cadeia significante para a qual o vínculo social se estabelece no tempo de recuperação, de gozo da parte do sujeito: o fato mais íntimo da experiência, a nomeação do objeto originário e perdido é, ao mesmo tempo, a raiz do vínculo social. Essa lógica representa o fruto maduro do trabalho de Lacan sobre "fato psíquico fundamental", a paranóia, iniciado com a tese de doutorado e que o havia levado a Freud.
Naqueles mesmos anos, Basaglia e seu grupo partiam da paranóia para interrogar o ponto de união entre doença mental e contexto social. Como dizia, esses não eram os pontos precedentes à corrente do trabalho de Lacan sobre paranóia (em particular o Seminário III - As psicoses) e, portanto, não puderam adotar a fundamental denúncia que Lacan havia feito do prejuízo psiquiátrico. Pode-se resumir da seguinte forma: tudo na clínica leva a reter que o perceptum alucinatório e, em geral, todo "fenômeno elementar" da psicose não é atribuível a umpercipiens que coincida com o Eu psicológico. Ao contrário, este último deve dar sentido a um perceptumcompletamente alienado para reintegrá-lo - em um segundo tempo - no sistema do Eu e esse é, propriamente, o trabalho da paranóia.
Naquele momento, na França, Lacan havia aderido a um projeto político de crítica da psicologia promovido por Politzer; tanto que a publicação da sua tese foi assinalada por Paul Nizan como precursora de mudanças no tratamento social da doença mental. O trabalho de Basaglia não interrogou a especificidade subjetiva da experiência psicótica. Veremos como será, a partir dessa falta, que toda sua crítica histórica ao tecnicismo psicológico não conseguirá separar-se do nível puramente estratégico. De resto, a falta de um encontro com a análise de Lacan foi favorecido pela censura quase total. Faz-se exceção para a voz de Fachinelli, que a psicanálise italiana pôs sobre a obra de Lacan, à procura de uma integração própria com aquela degeneração universitária que Lacan estava denunciando.
O grupo de Basaglia não tomou em exame a paranóia a partir da clínica, de caso a caso, mas a partir da análise feita por uma certa sociologia americana. Em particular, Basaglia estudou o escrito de Norman Cameron The paranoid Pseudocommunity, no qual se afirmava que "o comportamento psicótico é o de reter em si o resultado ou a manifestação de uma desordem na comunicação entre indivíduo e sociedade". Mais precisamente, "paranóide é aquele que, em situação de stress não usual é impelido - a causa da sua insuficiente capacidade de aprendizagem social - a reações inadequadas... O paranóide organiza simbolicamente uma pseudocomunidade em cujas funções ele percebe como seu ser é focalizado". O psicótico seria, pois, qualquer um que reagisse de modo conflitante a essa "comunidade imaginada".
Basaglia utiliza essa análise de modo bem mais surpreendente: atribui a falsidade dessa "comunidade" ao vínculo social como tal (como se quase tivesse lido Lacan) e, em conseqüência, "coloca em questão o fato de que o indivíduo possa ser um dado suficiente ao estudo da paranóia". Mas trata-se somente de uma intuição não sustentada pela teoria e que, de fato, demonstra não conhecer a crítica lacaniana à fenomenologia do percipiens. Aqui não posso encontrar embasamento para tal intuição. Ao contrário, Basaglia passa a atacar a psicanálise como o saldo maior da concessão Kraepelimiana da psicose como "condição ou síndrome constituída por sintomas", cuja casualidade vem a ser encontrada na "prisão da evolução psicossexual".
A denúncia do preconceito de um percipiens como sujeito do fenômeno elementar psicótico vem, assim, tomar duas estradas opostas e diversamente críticas. Lacan, ao partir da experiência clínica da transferência, demonstra que a interpretação da alucinação ficou viciada pela atribuição preconceituosa ao sujeito da consciência e a reporta a um déficit do significante que organiza a separação do S1 de S2 e o ponto do fino fio que os conecte posteriormente. Portanto, trata-se da posição do sujeito na linguagem. Basaglia, ao invés, partindo da hipótese sociológica de uma pseudocomunidade paranóica, tende a colocar esse elemento cognitivo em um contexto de relações políticas, a fim de isolar nele a articulação real no fato de que "'os outros' reagem de modo diferente em seus confrontos, e essa reação, habitualmente, se não sempre, implica uma ação secretamente organizada e um comportamento conspirativo no sentido do tudo concreto".
Parece-me que o ensinamento que permanece válido da via basagliana em nível da clínica seja aquele que leva a distinguir, a opor conceitual-mente, a patologia - aquela que para Lacan é do sujeito, também na psicose - e o sintoma que, quando não chega a ser o parceiro do sujeito, é o que origina o tratamento do psicótico por parte dos "outros".

4- Uma contradição do pensamento de Basaglia
O ponto de fragilidade do ensinamento de Basaglia, a meu ver, está em uma linha de fratura que se mantém por todo arco de sua vida e que, creio, possa ser suturada com os instrumentos da psicanálise de Lacan. Como Lacan, Basaglia sempre esteve aderido ao seu lado psiquiatra, guiado pela sensibilidade e pela inteligência clínica, centradas sobre o sofrimento particular do doente. Na teoria, ao contrário, utilizou o discurso filosófico sem chegar a revertê-lo para seu interior. Podemos vê-lo na resposta que sempre deu à pergunta "Que coisa é a loucura?", a qual sempre respondeu em dois níveis, encontrando-se, assim, a necessidade de manter uma certa oscilação entre elas:
- "É a miséria, a indigência e a delinqüência, submete a mudança da linguagem racional da doença".
- "Não sei que coisa seja a loucura. Pode ser tudo e nada. É uma condição humana".
Esta última frase é de 1979, um ano antes de sua morte. Até o fim, manteve essa oscilação para combater, especularmente, a resposta psiquiátrica que diz "interrompemos a questão" e, no entanto, fala ao lugar do louco. Sua estratégia foi manter a loucura no âmbito enigmático de sua dramaticidade; mais precisamente, negar a loucura como produto social para poder encontrá-la como sofrimento.
Era uma estratégia; por trás disso estava a idéia de que se tratasse somente de uma etapa para a transição para uma sociedade mais justa e humana. A luta para a liberação dos loucos se unia àquela mais geral de liberar a sociedade inteira da invasão da lógica do lucro. Para Basaglia, para ser psiquiatra deve-se sair do próprio rol e confrontar-se com os problemas gerais da sociedade: "ou tem o corpo do poder ou tem o corpo de todos nós" e aquele do louco é um corpo que sofre, "traço de uma subjetividade que reage e refuta o cerco do qual é objeto".
Como se vê, tal estratégia leva Basaglia a homologar a loucura a um sintoma neurótico, a uma mensagem decifrável, em que a decifração será um "trabalho de transmissão" entre o que se pode considerar produto do internamento e isto que é o de reter-se o núcleo da originária doença. Como veremos, o trabalho de Basaglia se prende de frente a essa segunda parte.
Poder-se-ia reassumir o projeto como Foucault + "otimismo da prática": liberamos o silêncio do corpo como inexprimível e irracional e trazê-mo-lo na sociedade. E será a sociedade a transformar-se, a acolher o irracional como componente "normal" da vida social.
A falta daquela sutura ou, para melhor dizer, de uma operação de torção interna da linguagem que o ato de falar da loucura, sem "acercar" o louco, leva Basaglia a confiar só na prática. "A necessidade de uma nova 'ciência' e de uma nova 'teoria' se insere naquilo que impropriamente vem definido como 'vazio' ideológico e que, na realidade, é o momento feliz no qual se poderia começar a afrontar os problemas de modo diferente". É exatamente essa operação que Lacan pôde completar a partir do inconsciente Freudiano: no discurso do analista esse vazio é colocado na função, sem preenchê-la, como base estrutural que cava no Outro do saber um objeto causa de desejo. O desejo do analista vem do princípio de uma prática que, ao mesmo tempo, renova a teoria do sujeito e da loucura.
Isso nos leva a encontrar um ponto de aplicação na frase: "Eu creio que a história do homem seja um pouco a batalha entre o seu ser e o seu corpo: o homem, encarcerado no seu corpo, busca na substância viver em uma relação dialética entre o seu ser e o seu invólucro." É a dialética que preside a subjetivação e que Lacan, noSeminário XI, formaliza como alienação - separação -, centrando-a sobre a perda do gozo, introduzida pela alienação e sobre seu reconhecimento como mais-gozar (objeto a) na separação. Basaglia, ao invés, deve confiar a superação dessa dialética a uma ética social: "não pode ser que um corpo socialmente e realmente inserido", entretanto é o sistema produtivo que "identifica corpo social e corpo econômico". Ainda assim, comentando a foto de Che morto: "Tenta-se integrar o seu corpo morto no sistema que Che Guevara - morto ou vivo - continua a negar, e nós não queremos ser as testemunhas mudas deste segundo assassinato".
Em síntese, Basaglia intui que para derrubar o prevalecimento do discurso científico e a sua importância de universalização deva-se opor ao real tratado da ciência, aquele da contingência. Este porém, não vem formalizado como o real da clínica e fica, assim, confiado a uma ética que tende simplesmente a negá-lo ou talvez a sublimá-lo. É uma ética que o leva a formular duas imposições:
1- dar atenção ao particular, trabalhar sobre o que é específico da própria situação institucional, conhecer e responder as necessidades reais do usuário, individualizando, junto a ele, para restituir-lhe a subjetividade. Isso o leva a considerar que o principal obstáculo seja a frustração: "o trabalho em um hospital psiquiátrico em transformação não é, pois, tão revolucionário." Por isto ocorre:
2- sair do específico da psiquiatria para atacar a lógica do estado burguês: "[...] aquilo que nós temos afrontado é um problema mais vasto que se alarga a todos os setores, é o problema do qual toda a gente fala, aquele da própria liberação".

5 - Técnicos ou intelectuais?
A necessidade de fazer calar todos os discursos da psiquiatria deixou Basaglia privado de um discurso que fundasse a ética do operador: agente de uma revolução ou de uma "vanguarda"?
A ética de Basaglia pode ser lida como uma ética do sacrifício; ele fala de renúncia, de uma "escolha de autodestruição nossa, pessoal, ao serviço dos internados". Isso que nos impede de considerar essa autodestruição como figura do desejo é a constatação de que, no passar do universal ao particular, o operador encontra nela a frustração. Trata-se de uma passagem hipotizada como movimento subterrâneo, tenaz, mas infinita; uma revolução silenciosa através da qual a sociedade retornaria à loucura.
Mais realisticamente, Lacan não nos propõe um retorno da sociedade à loucura, a partir do momento em que esta já a contém - definitivamente como normalidade - mas um retorno do gozo, preso no círculo superegóico do capitalismo, ao desejo do sujeito. A análise não é o atravessamento das ilusões por meio das quais o gozo se põe como causa do desejo, a fim de que se produza um desejo que é, ao invés, desejo de saber. É o quanto se pode contrapor à técnica.
Nessas condições, parece-me que seja promissor que o ataque ao particular e a fidelidade à clínica que Basaglia nos ensinou se encontre com a ética da psicanálise, assim como Lacan a redescobriu, para não naufragar na moral do sacrifício ou da suportabilidade da frustração. Para concluir, queria passar, em resenha, os motivos da oposição basagliana à psicanálise e, com base neles, examinar essa hipótese de trabalho.
A psicanálise que Basaglia concebe era aproximada ao problema da doença mental à luz da via aberta por Jaspers (vide H. Hey). Essa se aplicava às "relações de compreensão" para deixar à ciência o fenômeno psíquico fundamental, o núcleo orgânico da doença. Lacan, rapidamente, refutou, com veemência, a ilusão desse dualismo e propôs novamente a hipótese de uma ciência que incluísse o inconsciente. Basaglia simplesmente refutou o compromisso maniqueista como "ciência burguesa".
Em conseqüência daquele compromisso, a psicanálise operava um auto circuito entre o doente e o terapeuta ("privatização do conflito"), ao invés de colocar a subjetividade em um circuito muito mais amplo, introduzindo o lugar do Outro como descentramento da relação intersubjetiva.
Em síntese, na refutação da psicanálise havia motivação do tipo histórico. A estratégia basagliana se opunha àquela que seguiam os psicanalistas não Laca-nianos que entravam nos hospitais psiquiátricos "paralisando neles os processos de mudança, aumentando os sistemas de aliança e reforçando a corporação dos psiquiatras". Por isso se constatava que, em nível político, o ingresso das teorias psicanalíticas permitiam modernizar e, depois, estreitar a instituição manicomial. A experiência francesa do setor era avaliada dessa forma.
Hoje estamos em um novo tempo, e trata-se de colocar à prova o dispositivo do discurso analítico como herdeiro daquele uso foucaultiano do senso histórico que encontramos na obra de Basaglia.
Pode-se dizer, em conclusão, que proponho um Lacan que interpreta o desejo de Basaglia, repropondo a loucura como limite da liberdade humana.


[Em 2008, Massimo Recalcati, em Milão, faz um enodamento do não encontro de Lacane  Basaglia, contemporâneos e abordando a mesma quastão - a clínica da psicose -, sem terem, contudo, estabelecido um diálogo. http://www.jonasonlus.it/multimedia/il-nodo-basaglia-sartre-lacan.html]