sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Contorno [letra-corpo-cidade]

No segundo semestre de 2014, o CAPUT partiu para uma intervenção cultural urbana, que envolveu várias oficinas, equipe clínica e adolescentes em ações artísticas estimulantes e muito criativas. 

O processo de produção da ação artística "Contorno [letra-corpo-cidade]" começou com atividades de "contorno do corpo", com direito a uma homenagem ao "Divisor" da Lygia Pape. 


                           

Para experimentar o contorno do corpo no coletivo, Christina Fornaciari, auxiliada pelo educador Digô Faria, propôs que costurassem as roupas para se tornarem um corpo só, dentro de uma estrutura única e disforme (ideia de Órgãos sem Corpos, do Zizek, em cima do Corpo sem Órgãos Deleuze e Guattari, d'aprés Artaud). No momento em que ela tirou as peças da sacola, os meninos se empolgaram, começaram a vesti-las e a dançar! Desceram as escadas, foram mostrar, de um modo muito engraçado, à Nara, na recepção, como estavam lindos! Depois foram para o jardim de inverno, subiram na mesa, alguém puxou um funk e o negócio virou uma verdadeira festa. Serenados, experimentaram, em duplas, costurar as roupas. "Não consigo passar a linha na agulha, isso é bagulho de mulher", disse um menino, o que gerou um desdobramento sobre questões de gênero, preconceitos e olhares sociais. "Costurar eu sei", disse uma das meninas, "porque as tia lá [do centro Socioeducativo] ensina a gente". Ao final, meninos e meninas costuravam juntos. 

 



A segunda parte do processo foi uma oficina de letras, "contorno da palavra", para produção de frases com a palavra "contorno", coordenada pela Luciana Cezário. Seguimos, na oficina, um procedimento inspirado nos surrealistas, com seu Cadavre Exquis (cadáver requintado), disponibilizando para os meninos várias palavras e expressões que deveriam ser encadeadas, do jeito que quisessem, para formar frases de, no máximo, 10 palavras. Todas as frases deveriam ter a palavra "contorno" (as palavrinhas recortadas ficaram disponíveis). Além dos oficineiros, os profissionais psi se envolveram, evitando uma seriedade "literária" que poderia inibir os adolescentes (muitos com baixa escolaridade). A coisa seguiu o ritmo de uma brincadeira, leve e descontraída. Era permitido incluir artigos, preposições e pronomes, como o, a, os, as, da, do, das, dos, de, até, após, com, desde, em, etc. 

As palavras foram extraídas de textos e poemas de Cecília Meireles, Octavio Paz, Manuel Bandeira, Beatriz de Almeida Magalhães, Arnaldo Antunes, Leminski, Carlos Drummond de Andrade, Manuel de Barros, Adélia Prado, Torquato Neto, Vinicius de Moraes, Machado de Assis, Sousândade, Clarice Lispector, Augusto de Campos, Hilda Hilst, Ferreira Goulart, Antonio Cicero, Caio Fernando Abreu, José Saramago e Ana Cristina César. Esses autores já haviam sido selecionados anteriormente por Musso Greco, curador da intervenção "Contorno [letra-corpo-cidade], em seu conto "Avenida do Contorno", publicado no livro "Orates [contos clínicos]", de 2013, que começa com o que viria a ser o mote dessa ação artística no CAPUT: Como não tenho um corpo, me materializo na cidade. Minha matéria é feita das palavras dos poetas, dos escritores, dos mestres da língua. A língua assim equipada percorre o corpo da urbe, contorna-a, sobe e desce, vai e volta, lambe e entra. Contorno meu corpo.

   


As combinações palavreiras resultaram em efeitos poéticos, que não podem ser atribuídos ao mero acaso. De algum modo, o sujeito aparece na escrita, ao se apropriar das palavras do Outro. Um adolescente, por exemplo, escreve: As coisas têm contorno de deuses a nascer, corporizado em negro. E comenta: "Quis mostrar que passo por preconceito em relação à minha cor". Já uma menina, às voltas com a sensação de "falta de lugar no mundo", em um meio sociofamiliar hostil, escreve: Tu, cidade irreal, adorno do prazer, contorno do amor. Outras frases incríveis revelam, entre as palavras dos escritores conhecidos, um modo próprio de jovens anônimos nomearem algo do seu ser que traduz um excesso pulsional, sua falta de contornos:

Mas o ruído na hora de dizer fere o meu contorno

Que contorno de nada, eu te entorno

O contorno do teu corpo corria atrás da pessoa errada

Nas águas fundas, perco o controle e o contorno de tudo

Onde todo o contorno finda sobre o rosto irreal

Como um campo minado, só o contorno de uma sintaxe

Erro cujo contorno tem corpo

Toco o contorno da noturna noite que cobre o íntimo

Não me ensinaram nunca que as coisas têm contorno

Busco o contorno do último interno, o íntimo

(como não pedimos autorização a eles, não publicaremos os nomes dos adolescentes)








O próximo passo foi digitar e reproduzir as frases, inspirados no trabalho "Notas para meio-fio", do Wilson de Avellar (2010), originadas da sugestão de Giorgio Agamben, feita em "O que é o contemporâneo?", que situa o ponto de vista do observador "na cidade e no tempo em que lhe foi dado viver". 




As frases foram plotadas em papel, com letras de 8 a 10 cm de altura, depois cortadas em em tiras. 



                  


Fizemos testes com grude (sugestão do Warley Bombi), metil-celulose e spray adesivo SPRAY MOUNT da 3M (sugestão da Elisa Campos), e cola branca á base de PVA (sugestão do Wilson Avelar) no meio fio da frente do CAPUT. Optamos pela cola branca. Depois, escolhida a cola, fizemos um mapeamento dos lugares - esquinas da Avenida do Contorno - onde poderíamos colar as frases, no momento "contorno da cidade" de nossa intervenção. 

Foram, ao todo, 30 esquinas com a Avenida do Contorno: 1- Tupinambás; 2- atrás do Parque Municipal; 3- na praça em frente ao Instituto Raul Soares; 4- Grão Pará (canteiro); 5- Otoni; 6- Francisco Sales; 7- Grão Pará/Getúlio Vargas; 8- Santa Rita Durão; 9- Luz (sentido Santa Tereza); 10- Afonso Pena; 11- Antonio de Albuquerque (ilha); 12- Rio Grande do Norte; 13- Pernambuco (canteiro); 14- Alagoas; 15- Levindo Lopes; 16- Bahia (canteiro); 17- Colégio Estadual Central; 18- Marília de Dirceu; 19- Olegário Maciel; 20- Matias Cardoso (saindo da trincheira); 21- Amazonas; 22- Alvarenga Peixoto; 23- Timbiras (canteiro); 24- Andradas (em frente ao n° 10.100); 25- Mato Grosso (ilha); 26- atrás da Rodoviária (Rua 21 de abril); 27- Rio de Janeiro ; 28- Andradas (mureta do 104); 29- Caetés; 30- Oiapoque.


 
  
             
             



O lambe-lambe no meio fio dessas esquinas foi feito na noite de 6 de setembro, para que as frases pudessem ser vistas no dia seguinte, 7 de setembro, durante a VACO (Volta Anual da Contorno), uma farra performática, evento "da mais pura significação histórica, transcendental, monumental e abissal", "sujeito a alucinação, pulhas, pilantragem e curtição sincera garantidas" e "cercado, rodeado e preenchido com pujante euforia e miasmas (pútridos ou não)", organizado por Davi Kacowicz, André Veloso, Helena Assunção e Gabriel VonSeca, que está em sua 11a. edição. 


                                   


                                  




Trabalhamos, assim, o dentro – as condições internas da subjetividade, os sentimentos, a concepção de mundo –  e o fora – o que circunda o sujeito, sua representação social. Ao se darem a ver na cidade, como frase poética impressa no meio-fio, conclui-se um circuito pulsional, no qual o sujeito, efeito da experiência artística, é ele e é Outro, é autor e é obra, é uma camada da rua, um objeto, mas também um pedestre, um olhar. A reação excitada dos adolescentes à sua própria aparição no espaço público confirma esse reencontro da pulsão, esse reencontro do olhar: “Essas palavra é minha!”, “Ó eu lá!”, “Agora todo mundo vai ver!”.




                                


                                




É nóíz! - O CAPUT, lambendo a Avenida do Contorno com poesia.




  

 (equipe lambe-lambe do CAPUT)