sábado, 13 de junho de 2015

O nascimento do menino


Um intervalo na escuridão faz nascerem as coisas no mundo. No universo sem lugar para o divisível, ganha o jogo aquilo que é visível: dar à luz foi, antes de ser metáfora, uma possibilidade de deixar de ser supérfluo. Um incômodo na retina que provoca a língua a libertar uma palavra. A imagem, logo que nasce, ainda invertida, exige que o corpo expulse um nome. No reino das palavras presas, um intervalo na respiração é a dúvida da vida. – Respira fundo, prende, solta de-va-gar... Entre uma batida e outra do coração mora o susto. A expectativa que resiste entre o tum e o tá faz o tempo esticar o segundo. A próxima bulha só existirá se se suporta a pausa. Um intervalo no abandono é um sopro de esperança. A possibilidade de inventar um nome ali onde só habitava o vazio. Um intervalo na correria e ali está a mágica.
Ele chegou para um atendimento ao final do dia. Havia sido um desses dias sem jeito, sem tempo, sem pausa, em que quase nada germina. Choveu, mas nada molhou porque ninguém viu. Chamou o médico pelo nome e disse que estava melhor porque conseguira dormir à noite – este intervalo precioso na prisão. Eles se conheceram quando o menino tinha treze anos e existia na rua. Hoje, com quinze, as palavras aprisionadas não lhe dão a garantia da vida.
Como de costume, eles se assentaram para conversar, olharam-se e o menino tinha uma questão:
- O que você carrega na sua bolsa de médico?
- São as coisas que uso pra trabalhar.
Curioso esse menino. Ele franziu a testa, não ficou satisfeito com a resposta. O menino se lembrou do tempo em que coisava na rua e seu mundo era a pracinha da Santa Casa, o vidro com um pouco de thinner e algumas lembranças para serem desmanchadas. Foi nessa época que ele conheceu o médico. Mas era um tempo em que o trabalho do menino era para manter presa a palavra. Apesar do esforço, a receita era simples: thinner, pulmões e ninguém para escutá-lo.
O menino fez uma pausa, pensou, e arriscou libertar palavras perigosas. Saiu em forma de pergunta, foi como conseguiu:
- Você tem aquele aparelho de escutar o coração pra saber se a gente tá vivo ou morto?
- Tenho sim. Você sabe o nome desse aparelho?
- Não... Qual que é?
- Estetoscópio.
O médico pensou que fosse preciso começar a dar nomes às coisas, mas o menino estava decidido a arriscar mais.
- Posso ouvir meu coração?
Não pediu ao médico que o examinasse. Estava farto de pessoas que nunca lhe deram garantia alguma. A irmã, único contato que tinha, há semanas não o visitava. Estava só no mundo, um lugar sem intervalo na tristeza. Decidiu então que ele mesmo iria verificar o seu corpo. O médico lhe entregou o estetoscópio e, meio desajeitado, o menino tentou encaixá-lo nos ouvidos. Colocou sobre o peito e constatou surpreso:
- Dá pra ouvir! Mas é baixinho, né?
Devolveu o aparelho e se lembrou que há algum tempo um outro médico lhe dissera que tinha um sopro no coração. O menino quis saber se soprar um coração é bom ou ruim. Tem toda razão: afinal, um sopro sobre a ferida é um intervalo na dor, um sopro na brasa é o avivamento da chama e um sopro na vela, a morte da luz. Havia uma esperança: se ao menos um sopro no coração fosse um alívio no abandono... Um sopro de alívio! Como ele queria isso... Ah!
O menino se calou. Talvez estivesse inseguro, havia libertado palavras demais. O médico esperou, eram tempos difíceis ao sul do Equador. Equilíbrio não havia, a linha determinava que tudo permanecia desigual. O médico insistiu e perguntou ao menino se este se lembrava do nome do aparelho, dito há pouco. Ele se esforçou:
- Microscópio é pra ver bactéria... É telescópio?
O médico lhe disse que telescópio era para ver o céu. O menino então falou da vontade de ver novamente a lua. Onde estava preso não havia janela que lhe permitissevê-la. A grade é um intervalo na poesia. E estava preso. É fato que o menino desacontecera na rua por anos, mas lá também quase não via a lua:
- Será que um dia vou conseguir parar de usar thinner?
Quando estava no mundo das coisas que podia ver, o menino se esforçava para se apagar. Na rua, livre, se exilava no thinner.E nessa prisão não há grades, nem lua, nem poesia. Nem prosa, nem nada. Só um cheiro forte de napalm que fazia o apocalipse acontecer a cada inspiração. Agora!
Puxa!
(...)
De novo!
( )
O que houve de novo naquele dia, foi uma vontade. Parece que surgiu ali, naquela conversa. O menino queria acampar sobre o teto do consultório do médico e passar a noite vendo a lua. Sorriu. Mas se lembrou que estava preso. Fechou o sembante, olhou para baixo. Não conseguiu se lembrar do nome do aparelho, mas o pediu novamente. Posicionou o aparelho no ouvido, a outra extremidade no peito. Escutou atentamente, estava sério. Perguntou se era possível ouvir a cabeça. Colocou o aparelho na testa, ficou em silêncio... Esperou... Nada. Percorreu o corpo com o estetoscópio. Tentou ouvir a mão, pacientemente passou para o braço, depois o ombro, a barriga. Estava ouvindo! Tinha som a barriga! Sorriu, surpreso.
- O que é que tem aqui dentro? Acho que é útero que chama... É o lugar para onde vai a comida. Você sabe o que é menopausa?
(Ele havia ouvido falar que era coisa de mulher).
Colocou finalmente o aparelho sobre o tórax e conseguiu ouvir o som do ar. Que alívio!
- E aí? Você está vivo ou morto? - perguntou o médico.
- Estou vivo. Mas sei fingir de morto.
- Como é isso?
- Sei cair no chão de uma vez, como um morto. Às vezes faço isso.
- Isso não dói?
- Dói.Mas a gente acostuma.
O menino levantou, vivo!, percorreu a sala de atendimento. Disse que as paredes estavam muito brancas.
- Esta sala está triste. Precisa colocar mais cor aqui. Vocês podiam encher esse armário de livros, pintar as paredes.
Trocou as cadeiras de lugar, arrumou a mesa. Afinal, ali se deu um acontecimento mágico. Foi ali que o menino descoisou, nasceu. Naquele dia, por aqueles instantes. Mas sua vida continuou sem muita garantia e era preciso retornar.
Um intervalo na escuta: até a próxima semana.

Luís Fernando Duarte Couto
Maio/15

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